VIDAS ERRANTES



Moradores de rua de São Paulo e Maringá revelam histórias angustiantes e contam como enfrentam o desafio de dormir ao relento e andar sem destino pelas cidades


(Texto e fotos Airton Donizete)




Morador de rua  em São Paulo, que tem pelo menos 15 mil na mesma situação

- A produção de “refugo humano” ou, mais exatamente, de seres humanos refugados, os que não puderam ou não quiseram ser reconhecidos, os que não obtiveram permissão para ficar, é um produto inevitável da nossa sociedade. É consequência inseparável da modernização, efeito colateral da construção da ordem e do progresso econômico - diz trecho na contracapa do livro “Vidas desperdiçadas”, do sociólogo polonês Zygmunt Bauman.
Caminhando pela Avenida São João, centro de São Paulo, uma cena me faz refletir sobre as palavras que lera no livro de Bauman. Passa da meia-noite. Um pombo solitário belisca resquícios de comida em volta do cobertor encardido de um andarilho que dorme na calçada.
Ué, mas o pombo não dorme? Indaguei-me. Pelo jeito, não. Até as aves se adaptam à rotina de São Paulo. À noite, talvez, evite a concorrência na disputa por restos de comida na calçada. Durante o dia, teria de disputá-lo com outros pombos que ali vivem.
 A cena do pombo lembra os moradores de rua da capital paulista, cuja existência é um desafio constante. Alguns puxam carrinhos com papéis que juntam para vender; outros dormem debaixo de marquises ou em algum canto onde possam se acomodar.
Eles pedem esmolas nos semáforos ou sentados na calçada. A Praça da Sé é uma espécie de reduto deles. Ali, uns falam sozinhos ou fazem gestos como se estivessem discutindo com alguém. De repente, se revoltam e esmurram o invisível com socos no ar.
Há os que preferem o silêncio e a desconfiança. Talvez escaldados pelas agruras das ruas, evitam conversas. Mas há os sempre prontos a falar, desabafar. Eu, o professor Almir e o irmão dele, Júlio, caminhamos pelo Pátio do Colégio (centro). Naquele local, os padres jesuítas levantaram a primeira construção de São Paulo. Muitos moradores de rua ali. Alguns vivem até em barracas improvisadas.

Vejo um sujeito de cabelos pintados de vermelho. Simpático, ele topa falar. De Vitória (ES) veio para São Paulo tentar carreira de cantor. O sucesso não lhe sorriu. Douglas Silva, 32 (foto acima), lançou um CD, mas a gravação “não virou”. Sem emprego e dinheiro, restou-lhe a rua.
- Mas não sou vagabundo - defende-se. - Durmo embaixo de um abrigo na calçada, dividindo espaço com outros moradores de rua. Vez ou outra chega alguém me dizendo: “cantor não liga, não, vou cheirar um pó aqui”. Eu fico na minha. Não uso drogas -.
De volta à Praça da Sé. Um homem puxa um carrinho de catar papel com uma cachorra amarrada ao lado. Renildo Conceição, 66, vive na rua. A cachorra Vanessa o acompanha há três anos. Gorda e pelo liso, ele diz que a cadela é tratada com carne e ração, que ganha no comércio.
- Quando peguei ela era bebê. Virou minha companheira. Dorme do meu lado e, se necessário, me defende – diz ele, enquanto Vanessa late sem parar com cachorros que passam perto do carrinho.







Voltei à região da Praça da República. Na Rua 24 de Maio, encontrei o Ângelo Tadeu (foto acima), um paulista de 50 anos nascido na capital. Princesa, Neguinha e Laika estão amarradas ao seu carrinho de carregar papel. Elas latem com quem se aproxima. Ele diz gostar de animais, e as cadelas são companheiras fiéis nas andanças pela cidade.  
Solteiro, diz morar na rua há 35 anos. Ele conta que desavenças com a família o levaram a sair de casa. – Não dá certo, não. Eles lá (os parentes) e eu aqui – afirma. Trabalhou por muitos anos em um depósito de construção, mas perdeu o emprego e não conseguiu voltar ao mercado de trabalho. Sem dinheiro e casa foi morar na rua.
- Uma vida sofrida – reclama. - Eu fui assaltado umas dez vezes. No Inverno, a situação se agrava, o que ajuda, graças a Deus, é o coração bom das pessoas, que doam cobertores e roupa de frio pra gente -, diz, ressaltando que não falta comida para as cadelas, que estão castradas e gordas. – O povo dá ração, osso e até carne -. A venda de papel lhe rende cerca de R$ 15,00 por dia.
- É pouco, mas dá pra se virar – declara ele, afirmando não consumir bebida alcoólica nem drogas. – Evito porque essas coisas fazem mal. Eu bebia cachaça, mas fiquei doente um tempo, tive de tomar remédio e então parei de vez -.  





Maringá também tem moradores de rua. Um deles é Paulo Luís do Prado, conhecido por Zé Mochila (foto acima). Estava eu o radialista Rogério Rico numa padaria, na Avenida Herval, ele se aproximou. Rico que o entrevistara em seus programas de rádio, o apresentou a mim. Nascido em Floriano, distrito de Maringá, ele não sabe precisar quanto tempo vive nas ruas, mas deixou a família com 17 anos.
Com 56 anos, Prado diz que uma igreja evangélica lhe causou uma decepção e o fez desanimar da vida. Por algum tempo ficou internado num hospital psiquiátrico. Com dois irmãos em Sarandi e um em Cascavel, ele diz viver de pequenos bicos e do Bolsa Família, auxílio do governo federal que lhe rende R$ 85,00 por mês. Diz não consumir bebida alcoólica e cigarro, o que lhe permite economizar e guardar uns trocados na poupança.
A mãe dele ficou viúva três vezes. O primeiro marido, pai dele, se matou nas margens do córrego Taquaruçu, em Floresta, onde sua família morava. Ele carregou uma espingarda cartucheira, amarrando um barbante no gatilho e no dedo do pé. Encostou o cano no ouvido e disparou a arma, morrendo no local.
- Eu tinha um ano e só lembro que nossa casa ficou cheia de gente para o velório e eu engatinhando debaixo do caixão do meu pai – conta.
Prado permanece em Maringá, mas de vez em quando viaja pelo Brasil. Conhece Rio Grande do Sul, Espírito Santo, Rio de Janeiro e até a Argentina. A rua lhe é familiar, mas também lhe traz dissabores. Assaltaram-no quatro vezes. A experiência o levou a tomar cuidado ao escolher um local para dormir.
Ele evita permanecer ao relento, desprotegido. Se não conseguir pernoitar em albergues ou outros lugares de acolhimento, procura marquises de postos de combustível e borracharias. Diz que nesses locais se sente mais seguro, pois está próximo de gente.  
Solteiro, ele quer se casar. Diz que até os 60 anos encontrará a mulher “da sua vida”. Antes, quer fazer uma cirurgia para extrair uma hérnia na virilha que lhe incomoda e uma verruga no rosto. Outro sonho é ser pastor evangélico, apesar da decepção religiosa que sofreu e sobre a qual prefere não comentar.
- Eu tenho o dom do Espírito Santo. Agora sinto um calor no corpo. É o Espírito Santo se manifestando – afirma ele no momento da entrevista. Leitor da Bíblia e de gibis, Prado diz também gostar de música. Amado Batista e Roberto Carlos são seus cantores prediletos.  
Um hábito dele é falar de gastronomia. Durante esta entrevista, ele citou algumas receitas. Por exemplo: bater leite com ovo e trigo misturado ao polvilho de mandioca resulta num delicioso bolo. Para ele, preparar tempero é fácil. Basta misturar alho, shoyu, vinagre, sal e pimenta do reino ou cebola. Se o interlocutor tiver paciência de ouvir é uma dica gastronômica atrás da outra.

"REINSERÇÃO SOCIAL É A SAÍDA", DIZ PROFESSORA


A professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Maringá (UEM), Ana Lúcia Rodrigues, 55 (foto abaixo), e coordenadora do Programa de Mestrado em Políticas Públicas, da mesma instituição, e do Observatório das Metrópoles, Núcleo da UEM, diz que os moradores de rua de Maringá estão desprotegidos e a melhor maneira de amenizar o problema é a reinserção social. Entrevista a seguir.




Como está a situação dos moradores de rua em Maringá?

Desprotegidos e desassistidos pela assistência social, considerando que há uma política nacional para a população em situação de rua, aprovada pelo decreto número 7053/2009 do Ministério de Desenvolvimento Social. Pela qual, diversos projetos e recursos são disponibilizados aos municípios.
Em Maringá, são três projetos nacionais implantados: o Centro POP Rua, que atende durante o dia com serviços especializados que reúnem equipe de psicólogos, assistentes sociais, educadores sociais, pessoal de abordagem, entre outros. São oferecidas diversas atividades no local, como higiene, alimentação, contato com familiares, busca de reinserção, orientações e encaminhamentos para serviços públicos.
A Casa de Passagem (antigo Albergue), lugar para dormir que já abrigou mais de 100 pessoas por noite atualmente atende apenas 30. Há ainda o Portal da Inclusão, onde as pessoas ficam durante um ano, morando em uma casa alugada pela Prefeitura, atendidos por equipe técnica, para serem reinseridas no mercado de trabalho e na sociedade.
Também este projeto poderia incluir mais de 100 pessoas, mas Maringá optou por abrigar apenas dez. É muito pouca gente nessa situação na cidade, o que permite ao poder público enfrentar o problema e dar repostas eficientes. Não será com a repressão, a violência ou a velha prática da passagem para irem embora que a questão será resolvida.   

Frequentemente se ouve dizer que moradores de rua é um problema complexo. Qual é a solução para ele?

É complexo, sim, pois as pessoas nessa condição reúnem um conjunto de vulnerabilidades. São pobres e, a maioria, desempregada; dependentes químicos; muitos têm problemas graves de saúde. Mas por meio de investimento público é possível responder às dificuldades que elas enfrentam.
Também é necessário ampliar vagas nos espaços públicos de atendimento; criar lavanderias coletivas em alguns pontos da cidade, onde eles próprios possam lavar e secar suas roupas; instalar geladeiras nas calçadas em que possam depositar alimentos para que eles consumam; construir pequenas estruturas cobertas e abertas, nas praças públicas, com bancos e ganchos para dependurar redes, entre outras medidas. Todas as estruturas com manutenção e limpeza públicas.
Mas a melhor politica é a reinserção social, pois nas duas pesquisas que realizamos em Maringá, em 2015 e 2016, 92,5% e 93,3% disseram que desejavam sair da rua.      

No caso de Maringá, qual o perfil dessa gente?

Constatamos que 90% são homens; 30% são brancos e 65% pretos ou pardos; 50% têm ensino fundamental incompleto; 13% ensino médio; 3,5% nenhuma escolaridade; 20% fundamental completo e 0,5% superior.
            Não conseguimos abordar todas as pessoas. Abordamos e entrevistamos 160 em 2015 e 117 em 2016. Há uma estimativa de que havia nos dois momentos cerca de 200 pessoas nas ruas de Maringá, mas observamos que em 2017 esse número vem aumentando. Estamos organizando nova pesquisa este ano, que será realizada até julho.


MAIS DE 15 MIL MORAM NAS RUAS DE SP; 291 EM MARINGÁ

A Assessoria de Imprensa da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS) informou que o Censo da População em Situação de Rua da Cidade de São Paulo, em 2015, detectou 15.905 pessoas nessas condições. O órgão diz que é um assunto complexo, levando em conta a peculiaridade de cada pessoa nesta situação.
No entanto, informa que a gestão atual tem como meta melhorar e ampliar os serviços já existentes na cidade e, além disso, dois programas específicos para essa população já estão em andamento: o "Espaço Vida" e o "Trabalho Novo".
         Diz ainda que os atuais Centros de Acolhida serão reconfigurados e "transformados" em Espaço Vida, melhorando sua estrutura, ampliando os serviços e as áreas comuns. Assim, o padrão de qualidade será maior do que o existente, além de pretender que sirvam como campo de preparação para o trabalho em diversas áreas.
         O programa Trabalho Novo promove a capacitação e inserção dos moradores em situação de rua no mercado de trabalho, proporcionando emancipação e conquista de autonomia dessas pessoas, como empregado ou empreendedor. Formalização de parcerias com empresas de diversos segmentos já acontece. O trabalho em conjunto entre o setor público e o privado é fundamental para a realização do objetivo.
Acrescenta que, atualmente, a SMADS realiza abordagem de moradores em situação de rua em toda a cidade. Eles são encaminhados aos serviços com foco em cada segmento específico: pessoas sozinhas, famílias, idosos, crianças e adolescentes, população LGBT e imigrantes.
 Maringá
A Assessoria de Imprensa da Prefeitura informou que a Secretaria de Assistência Social e Cidadania (Sasc) identificou 291 moradores de ruas em Maringá, em 2016. Declara que a Prefeitura oferece o Centro de Referência Especializado para Pessoas em Situações de Rua (Centro Pop). No local, são realizadas ações para a reconstrução de projetos de vida, atividades de higiene, alimentação, lazer, interação e reflexão social, fortalecimento de vínculos interpessoais e familiares e, consequentemente, a reinserção social.
As pessoas são encaminhadas à Associação Aliança de Misericórdia e à Casa de Passagem Santa Luiza de Marilac. O Centro Pop também oferece, diariamente, Serviço Especializado em Abordagem Social para adultos. Em 2016, a Sasc registrou 2.332 atendimentos (1.763 migrantes) pelo Centro. Em 2017, 310 (130 migrantes).



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