UMA MULHER APAIXONADA



Aos 89 anos, Lygia Fagundes Telles, a dama da literatura brasileira, em entrevista exclusiva no seu apartamento em São Paulo, fala da amizade com Clarice Lispector, da morte, da paixão pela vida e de literatura

Texto e fotos: Donizete Oliveira

Entrevistar Lygia Fagundes Telles era um sonho. Sempre a admirei. Há dois anos tentava marcar um encontro com a escritora, mas sua assessoria de imprensa repetia que não havia espaço na agenda. Em maio de 2013 quando fui a São Paulo resolvi ligar e, para minha surpresa, a própria Lygia atendeu.
Não falei em entrevista. Não sabia a reação dela. Apenas disse que queria visitá-la. Ela respondeu que poderia me receber no outro dia, por volta das 14 horas. Mais tarde iria a um evento na Academia Paulista de Letras.
Lygia mora na Rua da Consolação, nos Jardins, quase esquina com a famosa Rua Oscar Freire. Lá fui eu. Cheguei à frente do prédio. Anuncie minha presença. A empregada dela atendeu. “Pode subir, a escritora tá esperando”, disse.
Comprei numa banquinha na própria Consolação um buquê de lírios amarelos e dei para ela. Recebeu, emocionada, e entregou a empregada Lídia, que as colocou num vaso com água.
A prosa com Lygia virou uma entrevista regada a vinho do porto. Disse que havia dado uma pausa no pouco álcool que consumia, mas me serviu um copo. Servi-me mais duas vezes. Ótimo vinho. Logo percebi que estava diante de um daqueles personagens infinitos.
Impossível explorá-la numa hora de prosa. Lygia fala da infância, da família, da faculdade, dos amigos, dos livros e de muitas outras coisas. Não responde minhas perguntas. Emenda um assunto ao outro.
Senso de humor não lhe falta. Com mímicas, imita o pai dela fumando charuto. Também a língua presa de Clarice Lispector. Sua grande amiga, com quem viajou à Colômbia para um evento literário. Lygia me dá um presente. E que presente! Uma foto dela com Clarice na Colômbia, na década de 1970.
Depois de muita prosa, ela acende um cigarro. “Vocês me dão licença, que vou fumar”, diz. Nascida em São Paulo em 19 de abril de 1923, ela continua bonita e apaixonada. Uma mulher apaixonada. Ou melhor, vocacionada. Paixão para ela é fazer o que gosta. É vocação.
Aspira a fumaça, solta. Entendi que a prosa chegara ao fim. Ela autografa um exemplar do livro “As Meninas” e me entrega. Vai à estante pega outro de contos, também autografa. Para eu entregar ao cônego Benedito Vieira Telles, um parente distante, de Maringá. A empregada pede para eu apressar. Lygia tem de almoçar e se arrumar para ir à Academia Paulista de Letras, da qual é membro. Também pertence à Academia Brasileira de Letras. 
Me despeço. Ela me acompanha até a porta. Diz ser um hábito que aprendeu com os egípcios. A entrevista com Lygia, resultado da prosa daquele dia, está a seguir.
Como a senhora começou a escrever?
Sou formada em direito e educação física. Era corredora de 400 metros. Há cinco anos, quebrei o fêmur da perna direita. Fui operada. Não tenho dor, mas não dá mais pra correr 400 metros (risadas).
Meu pai era promotor público. Era removido de um lugar pra outro. Conheço uma cidade chamada Apiaí. Ninguém sabe dessa cidade, a origem seria “apeia aí”. Passei minha infância no interior paulista, principalmente em Sertãozinho. Conheço Descalvado, Itatinga, Assis, entre outras. Eu contava história pras meninas e meninos do meu bairro. Contava pequenas histórias, e eles gostavam.
Conhece Maringá?
 Maringá, não. Só a música. Na minha juventude, eu cantava: “Maringá, Maringá/Depois que tu partiste/Tudo aqui ficou triste/Que garrei a imaginar/Pra haver felicidade/É preciso que a saudade/Vá morar em outro lugar”...
Que alegria! O Brasil apesar de tudo... É preciso ter esperança! O que é esperança? É paixão. O que é paixão? É vocação. É preciso amar a vida. Com paixão, com força. Acreditar. Já que é preciso aceitá-la, que seja então corajosamente. Fazer o que amamos. Isso se chama vocação. Você cumprindo sua vocação, você está feliz.
De onde vem inspiração para escrever?
Eu contava histórias quando eu não sabia escrever. A mamãe tinha... hoje se fala babá, mas eu gosto da palavra antiquada pajem. Minhas pajens. Na antiguidade, elas seguiam as princesas tocando bandolim. Eu contava histórias pra elas quando não sabia escrever.
Comecei a registrar as histórias que eu contava pra não perdê-las. Mas todos escritos da minha juventude, eu abomino. Eu era muito jovem e não sabia escrever, escrevia porque tinha vontade e tal. Então cortei toda essa parte. Eu considero minha obra a partir do romance “Ciranda de Pedra”.
Os críticos também passaram a considerar minha obra a partir daí. Incluindo meu grande amigo, Carlos Drummond de Andrade, que me dizia: “Seus livros, os primeiros, vamos esquecer. A partir de ‘Ciranda de Pedra’, sua obra se firmou”.
Que autores a senhora lia?
Assim que minha família se mudou pra São Paulo, eu comecei a ler. Lia desbragadamente. Lia tudo. Eu comecei a ler os primeiros livros... Edgar Allan Poe, Victor Hugo. Lia aquele escritor francês que morreu jovem (não se lembra do nome).  
E a literatura atual?
A qualidade é ótima, mas você vê nos jornais, nas revistas, na lista dos mais vendidos quase não aparece brasileiro. Machado de Assis, Guimarães Rosa, não estão lá. Mas há escritores estrangeiros de má qualidade, inferiores. Onde está Machado? Onde está Guimarães Rosa?
Por quê?
Porque há uma... (longa pausa). Olhe, é um mistério. Um mistério! Quem sabe vocês da imprensa conseguem esclarecer esse mistério? Por que o brasileiro não gosta do Brasil? Por que não gosta da literatura brasileira? Eu pergunto. Tá compreendendo?
Inclusive escritores estrangeiros que eu nunca leria, de qualidade inferior, são os mais lidos. E onde estão os brasileiros? Então eu tenho uma frase, que considero importante. Há no Brasil três espécies em processo de extinção: o índio, o escritor e a árvore.
O índio... Está a situação que vemos aí. Os escritores... Acabei de falar. Por que os escritores brasileiros não são lidos no Brasil? Grandes escritores, onde estão os poetas, os românticos?
Na faculdade de direito onde me formei, do Largo São Francisco, tem gravado na porta três nomes: Alvares de Azevedo, Fagundes Varela e Castro Alves. Um paulista, um fluminense e um baiano. Quem lê esses escritores hoje? Você tá vendo a tristeza... Que acontece com o Brasil, que não ama sua literatura?
E as árvores?
Aqui em SP, as árvores não crescem mais. Elas não conseguem aprofundar sua raiz. O concreto não deixa.
Em Maringá, ainda há árvores nas ruas?
Muito bem. Parabéns Maringá! “Maringá, Maringá, depois que tu partiste” (canta)... Mas aqui em São Paulo tem essa camada de concreto que não deixa as árvores crescer.
Coitadas, elas querem aprofundar as raízes, mas não podem. Então, elas estão caindo. Quando tem uma tempestade, um vento forte, elas caem. Então, vou repetir: o índio, o escritor e as árvores são espécies em processo de extinção.
A senhora prepara um novo livro?
Sou da Academia Brasileira de Letras. Gosto muito da academia. Meus amigos estão lá. Infelizmente, não posso viajar ao Rio de Janeiro. O avião é muito complicado. As poltronas são muito próximas uma das outras. Não tem espaço pra minha perna. Minha pobre perna fraturada. Meu médico diz: “Dona Lygia, não fale que a senhora quebrou a perna. Diga que tem o fêmur fraturado. É mais elegante”.
Quando ando de carro, daqui a pouco vou à Academia Paulista de Letras, sou obrigada a sentar na frente com o chofer porque a cadeira é dura. Preciso de cadeira dura por causa da minha perna fraturada.
Um dia o chofer perguntou: a senhora tá com um problema na perna por isso tá aqui na frente? Eu disse que havia caído e fraturado o fêmur, repetindo as palavras chique e elegante do médico. Ele perguntou pra que time eu torcia, eu disse pro São Paulo.
Olhe, disse ele, não diga pra ninguém porque eu sou do Corinthians, e eles são bravos. Se a senhora disser, eles podem quebrar sua outra perna. Melhor não arriscar. Diga sou de um clube aí (risadas).
Ouvi dizer que toda sua obra será relançada?
Gosto muito da minha editora, a Companhia das Letras. Ela tá relançando todos meus livros. Tenho livros relançados pela Editora Ática, que acho importante. Os adolescentes têm que ler a literatura brasileira. Eu era muito amiga de Clarice Lispector. Viajamos juntas. Até vou mostrar uns retratos (pega um álbum com antigas fotografias).
A Clarice era muito engraçada. Viajamos a uma universidade da Colômbia no mesmo avião. Até aquele dia não tinha relação com ela. Não gosto de avião. Hoje mesmo vi um artigo que dizia: perca seu medo de avião. É fácil, digo eu, só não subir nele (risadas).
Então, estava eu e Clarice. E vai o avião no meio das nuvens, balançando. Disse esse troço vai cair e eu ainda não acabei de escrever o que eu queria (risadas). Clarice que estava ao lado, respondeu: “Não fique com medo Lygia, minha cartomante disse que vou morrer na cama, então se estou aqui este avião na vai cair”.
Aí eu disse bom então não vai acontecer nada e não aconteceu. Mas a Clarice era curiosa. Ela tinha a língua presa. Quando a gente ficava em hotel, ela dizia: vamos sair pra comprar esmeraldas (imita a fala da amiga). Nasceu com a língua presa. Podia fazer uma cirurgia, mas naquela época era muito dolorida.
Ela dizia pra mim, você ri muito. Tem que ficar séria nos retratos porque senão os homens não levam a gente a sério. Repara que eu não rio em nenhum retrato (imita a língua presa da Clarice e dá risadas).
Olhe aqui! Mostras as fotos antigas (entre elas, estão Vargas Llosa mocinho e Clarice Lispector). Ela era ótima, a Clarice. Eu gostava muito dela. Grande amiga. Quando morreu meu segundo marido, Paulo Emílio, ela me mandou um bilhete me consolando, mas no mesmo ano ela morreu.
O envelhecimento e a morte são temas recorrentes na literatura, como a senhora os encara?
Engraçado. Eu nunca pensei em fazer plástica. Isso não me atormenta. Minha vó era italiana, minha árvore genealógica é portuguesa misturada com índio, bem lá embaixo.
Nunca me ocorreu isso. Vou tocando. Contanto que eu conserve uma cara que não amedronte as criancinhas (risadas). Hoje por exemplo tenho uma reunião na Academia Paulista de Letras (lembra-se de Rui Mesquita, um dos donos do Jornal O Estado de S. Paulo, que havia morrido no dia anterior a esta entrevista).
Quando eu era jovenzinha, eu estava na faculdade de direito, o Alfredo Mesquita, que era tio do Rui, me convidou para fazer teatro amador. Eu fui, mas mamãe ficou desesperada. Disse minha filha você já entrou numa escola só de homens (Faculdade do Largo São Francisco, na época), agora vai fazer teatro. Aí que não vai casar mesmo. Ao contrário, casei duas vezes (risadas). Na faculdade, éramos apenas cinco moças, todas virgens, inclusive eu. Mamãe era vigilante, ficava de olho. Casei virgem.
Ela tinha pavor. Dizia, minha filha, a sociedade não gosta de mulheres que saem de casa e vão fazer coisas. No entanto, meu professor de direito, o Miguel Reale, dizia que a mais importante revolução do século 20 foi a revolução da mulher. Acho isso importantíssimo. Quando entrei na faculdade, um rapaz perguntou: o que vocês vieram fazer aqui, casar? Disse também e me casei com um dos meus professores, meu primeiro marido, o Goffredo.
E a morte?
Quando eu era criança, eu contava história, como já disse. Sertãozinho está importantíssima. O Cristo Redentor de lá é maior do que o do Rio de Janeiro. Guardo muitas lembranças de lá. Mas o que mesmo você me perguntou?
Pois é, a primeira vez que entendi a morte foi quando morreu meu cachorro. Eu o adorava. Isso foi lá no interior. Quando enterraram meu cachorro, espantei. Disse: nunca vou ver mais meu cachorro? Meu pai disse que não. Então, perguntei: e a gente? Meu pai fumando um charuto (imita-o dando baforadas) respondeu: quando a gente morre, quem acredita em Deus, vai pro céu e espera uma reencarnação. Quis saber o que era aquilo.
Ele respondeu: difícil explicar pra você, filha, mas vou tentar. A pessoa quando morre pertence a outra vida. E depois volta. Vê se você entende, um filósofo importante dizia: eu já fui uma donzela, um pássaro azul da floresta e um peixe do mar.
Disse que bonito papai. Então é isso, respondeu ele. Reencarnação você volta em outra forma. Mas a essência é a mesma. A gente vai voltar? Eu perguntava. E ele respondia baforando seu charuto. Quando eu morrer, quero voltar nessa forma em que estou. Ou então, não. Será uma surpresa. Deus é quem sabe (risadas). 
  

Dois casamentos e muitos prêmios

Lygia Fagundes Telles nasceu em São Paulo, mas se criou no interior do Estado. Filha do promotor público Durval de Azevedo Fagundes e da pianista Maria do Rosário de Azevedo (Zazita). Cursou Direito na faculdade do Largo do São Francisco, da Universidade de São Paulo e Educação Física na mesma instituição.
Casou-se com o jurista e professor Goffredo da Silva Telles Júnior, com quem teve seu único filho, o cineasta Gofredo Telles Neto. O segundo casamento foi com o cineasta Paulo Emílio Salles Gomes. Ambos morreram.
Gofredo Neto, que morreu em 2006, lhe deu duas netas: Lúcia Carolina Aidar da Silva Telles e Margarida Goreki da Silva Telles. Ela vive com a empregada Lídia. Nos fins de semana, as netas lhe fazem companhia.
Membro da Academia Brasileira de Letras, Lygia foi publicada na França, Estados Unidos, Alemanha, Holanda, Portugal, Suécia, República Checa, Espanha, entre outros países, com obras adaptadas para o cinema, teatro e TV.
Ganhou os prêmios: Instituto Nacional do Livro (1958); Guimarães Rosa (1972); Coelho Neto, da Academia Brasileira de Letras (1973); Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro (1980); Pedro Nava, de Melhor Livro do Ano (1989); Melhor livro de contos, Biblioteca Nacional; Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro; Aplub de Literatura; Jabuti (Ficção, 2001) e Camões, em 2005.

Obras

(Contos)
Porão e sobrado, 1938
Praia viva, 1944
O cacto vermelho, 1949
Histórias do desencontro, 1958
Histórias escolhidas, 1964
O jardim selvagem, 1965
Antes do baile verde, 1970
Seminário dos ratos, 1977
Filhos pródigos, 1978 (reeditado como A estrutura da bolha de sabão, 1991)
A disciplina do amor, 1980
Mistérios, 1981
A noite escura e mais eu, 1995
Venha ver o por do sol
Oito contos de amor
Invenção e Memória, 2000 (Prêmio Jabuti)
Durante aquele estranho chá: perdidos e achados, 2002
Meus contos preferidos, 2004
Histórias de mistério, 2004
Meus contos esquecidos, 2005
(Romances)
Ciranda de pedra, 1954
Verão no aquário, 1963
As meninas, 1973
As horas nuas, 1989




Lygia diz que é preciso amar a vida com paixão, com força, acreditar nela

Lygia e Clarice Lispector na Colômbia, na década de 70, com um amigo


Simples e carismática, em entrevista no seu apartamento, nos Jardins, em SP

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