Gripe espanhola - Desesperados, doentes procuravam atendimento nas delegacias de polícia



A falta de um sistema de saúde público fez aumentarem os mortos, cujos corpos eram abandonados nas ruas do Rio de Janeiro em meio a ratos e urubus, formando um cenário devastador  


(Donizete Oliveira, jornalista e historiador)


Minha infância se passou na roça. Meu pai, José, era contador de causos. Em dias chuvosos, eu sentava na taipa do fogão a lenha para ouvi-lo. Ele nascera em 1915, infelizmente, morreu com apenas 64 anos de um tumor no intestino. Seus causos, muitas vezes, retratavam episódios de sua difícil infância, em pleno auge da chamada gripe espanhola, que, segundo estudos, matou pelo menos 50 milhões de pessoas pelo mundo entre 1918 e 1919.
Mesmo após seu pico, ainda provocava medo. Meu pai dizia que qualquer gripe levava as pessoas ao desespero, imaginando ser a temida gripe espanhola que, no Brasil, matou em torno de 35 mil pessoas. O Rio de Janeiro, que tinha 910 mil habitantes, em 1918, foi a cidade que mais sofreu com a pandemia, registrando 15 mil mortes. Em apenas um dia houve 930 óbitos.
O desaparelhamento do setor de saúde contribuiu para a catástrofe. Mas a censura imposta pelos militares ajudou a agravar a situação, criando dificuldades para o esclarecimento público.  Houve um caos na capital carioca. Corpos espalhados pelas ruas em meio a ratos e urubus, e os moradores desesperados, sem poder trabalhar, provocavam saques. Fechamento de cafés, teatros, escolas e clubes sociais e o isolamento familiar atenuou a catástrofe.
Remédio não havia. Vacina nem pensar. A ciência não conhecia a ação dos vírus. De tudo se anunciava para curá-la. Diziam que cachaça, limão, mel e alho faziam efeito. Os ingredientes misturados eram servidos aos doentes. Há quem diga que, retirando o alho, a mistura deu origem à caipirinha. Começava como uma gripe comum e, em pouco tempo, evoluía para pneumonia grave. A pele do doente ganhava um tom azulado, chamado cianose, por causa da falta de oxigênio.
A morte era certa e rápida. Sem sistema de saúde adequado, os doentes, desesperados, procuravam ajuda nas delegacias de polícia. Uma das vítimas foi o presidente da República, Rodrigues Alves. Eleito para seu segundo mandato (1918-1922) morreu antes de assumir o cargo. O lado bom foi que as autoridades começaram a pensar na importância de se estruturar a saúde pública. Assim, nasceu o Departamento Nacional de Saúde Pública que, em 1930, no governo Getúlio Vargas, se transformou no Ministério dos Negócios da Educação e Saúde Pública. Que é embrião do atual Ministério da Saúde e do Sistema Único de Saúde (SUS), criado na Constituição de 1988.
O carnaval de 1918 fora cancelado por causa da temida gripe, mas, em 1919, com o arrefecimento da doença, ele voltou animado. “Não há tristeza que possa/ Suportar tanta alegria/ Quem não morreu da espanhola/ Quem dela pôde escapar/ Não dá mais tratos à bola/ Toca a rir, toca a brincar...”, dizia uma das inúmeras marchinhas cantadas nos clubes e ruas do Rio de Janeiro. Carmen Miranda emplacou o sucesso: “E o mundo não se acabou”, que dizia: “Anunciaram e garantiram/ Que o mundo ia se acabar/Por causa disso/Minha gente lá de casa/Começou a rezar”.
 A origem da gripe espanhola foi nos Estados Unidos. Navios a levaram para Europa, onde acontecia a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Soldados fracos e doentes nas trincheiras imundas facilitaram a contaminação e transmissão do vírus. Ao Brasil, a doença chegou também por via marítima. Fala-se no navio Demerara, que desembarcara passageiros no Recife, Salvador e Rio de Janeiro.
O nome “gripe espanhola” não significa que a doença tivera origem na Espanha. Assim foi nominada porque a Espanha, neutra na guerra, foi o país que mais a divulgou. Daí veio o termo “gripe espanhola”. Em 2005, cientistas realizaram o sequenciamento genético do vírus responsável pela pandemia de 1918 e constataram que se tratava da Influenza A (H1N1). Uma cepa deste mesmo vírus voltou a se manifestar em 2009, quando provocou entre 150 e 575 mil mortes no mundo.  

Jornais da época retratam o caos vivido no Rio de Janeiro durante a pandemia

Panfletos distribuídos alertavam sobre a doença que matou milhares no Brasil

O precário sistema de saúde do Brasil não conseguia atender os doentes


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