VIAGEM - DESAFIOS EUCLIDIANOS





Visitar São José do Rio Pardo, cidade do interior paulista que abriga o mausoléu com restos mortais do autor de “Os Sertões”, uma ponte que ele construiu sobre o Rio Pardo e a casa na qual morou, hoje Casa Euclidiana, é uma espécie de tônico, que revitaliza a alma

(Texto e fotos Airton Donizete)

A vida é mesmo um desafio. Sair de Maringá e percorrer 680 quilômetros até São José do Rio Pardo (SP) debaixo de uma chuva incessante é um desafio. Nem todos motoristas respeitam a velocidade e, mesmo com a pista alagada, fazem ultrapassagens arriscadas. Outro desafio é o próprio bolso. Haja dinheiro para pagar tanto pedágio. Mas quem leu “Os Sertões” não desanima. Veja o que diz Euclides da Cunha.
“Entretanto, toda essa aparência de cansaço ilude. Nada é mais surpreendedor do que vê-la desaparecer de improviso. Naquela organização combalida operam-se, em segundos, transmutações completas. Basta o aparecimento de qualquer incidente exigindo-lhe o desencadear das energias adormecidas. O homem transfigura-se. Empertiga-se, estadeando novos relevos, novas linhas na estatura e no gesto”, diz um dos trechos do magnifico livro de Euclides da Cunha. Ele se refere à bravura do sertanejo de Canudos, no sertão baiano.
Tudo que vem de Euclides parece mesmo desafiar. O próprio “Os Sertões” é um livro árido, pesado. No tamanho e na compreensão. Não é qualquer leitor que encara suas mais de 600 páginas. Dividido em: a terra, o homem e a luta, é um convite constante ao dicionário. Há palavras profundas, arcaicas e típicas do agreste. Um livro pouco lido e muito comentado.
Mas esses detalhes fazem dele o clássico que é. Datado, mas presente. De valor perene. Feito o sertanejo que Euclides descreve. A aparência ilude. De repente, “ele transfigura-se, basta qualquer incidente exigindo-lhe o desencadear das energias adormecidas”. Todo drama que assola o Brasil está em “Os Sertões”. Canudos, Conselheiro e seus seguidores são a síntese de nossos dias.
Andar pelas ruas íngremes de São José do Rio Pardo, cidade de pouco mais de 50 mil habitantes, também é um desafio. Quem não tem as pernas preparadas sofre. Para vencer o mormaço e o sol ardido, com cara de chuva, refleti sobre "Os Sertões”. Um livro, cujo desafio se divide na compreensão do leitor que se aventura pelas suas páginas e na sua mensagem, que é um convite à resistência. “Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu ao esgotamento completo”, escreveu Euclides.
De um lado, um governo afoito, querendo a qualquer custo destruir Canudos; de outro, os conselheiristas, que resistiram até o fim. Arrasaram o arraial, matando pelo menos 25 mil pessoas. Mas só derrubaram Canudos na quarta expedição. Não levaram de bandeja, como previam. Os adeptos de Conselheiro, apesar da religiosidade que os impregnava, desafiaram e resistiram ao poder constituído.
Passei pela Casa Euclidiana, onde o escritor morou, e cheguei à Ponte Euclides da Cunha sobre o Rio Pardo. Outro desafio que cruzou o caminho do autor de “Os Sertões”. Construída pela primeira vez em 1897, desabou 50 dias depois. Engenheiro, Euclides assumiu a tarefa de reerguê-la. Inaugurou-a em 1901. Um trabalho árduo, mas ele ainda arrumou tempo para escrever seu monumental livro numa cabana de zinco; até hoje preservada nas margens do Rio Pardo, onde também está o mausoléu com os restos mortais dele e do seu filho, cujo nome é o mesmo do pai.
Depois de algumas reformas, a ponte continua de pé. Para preservá-las, proibiram ônibus e caminhões de trafegarem sobre ela. É uma obra que atesta a seriedade de Euclides. Após conclui-la, mandou embalar todo o material que sobrara e devolveu ao governo do Estado de São Paulo. Em 1902, lançou “Os Sertões”, concluindo outro desafio iniciado em 1896 na Guerra de Canudos. Correspondente do jornal O Estado de S. Paulo, ele cobriu o conflito.
Escritor, engenheiro, militar, físico, naturalista, jornalista, geólogo, geógrafo, botânico, zoólogo, hidrógrafo, historiador, sociólogo, professor, filósofo, poeta, romancista e ensaísta. O que mais dizer de Euclides? Um homem completo. Só não evitou a traição da mulher, Anna Emília Ribeiro da Cunha, com o cadete Dilermando de Assis. Tentou matá-lo, mas acabou morto por ele em 1909. Em 1916, seu filho, Euclides da Cunha Filho, tentou vingar a morte do pai e também foi assassinado por Dilermando.

Mas como Euclides descreveu: "O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral”. As máximas euclidianas são uma espécie de tônico, que revitaliza a alma. De São José do Rio Pardo, segui para Monte Belo (MG). Se Minas é mesmo um estado de espírito, que venham os mineiros. Novos desafios à vista.
FOTOS: 
Mausoléu onde estão os restos mortais de Euclides da Cunha

Redoma de vidro protege a cabana; nela Euclides escreveu "Os sertões"

Casa em que morou o escritor em São José do Rio Pardo

O escritor Euclides da Cunha















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