domingo, 17 de dezembro de 2017

ASSIM NASCEU O PAGODE DE VIOLA EM MARINGÁ


Nos anos 1950, Tião Carreiro vinha com frequência a Maringá, de onde saía com seu parceiro, Pardinho, para se apresentar nos circos da região, e numa dessas paradas no antigo Hotel Paulistano, com ajuda de Zorinho, atual maestro Itapuã, ele criou uma batida diferente na viola, consagrando um novo jeito de tocar o instrumento. É o que mostra o documentário “A mão direita do Itapuã – um caminho possível para conhecer o ritmo do pagode”, realizado pelo músico e pesquisador paulista Saulo Alves

(Texto: Airton Donizete - Fotos: Divulgação e Domingos Bernardino)

Houve um tempo em que Maringá respirava música sertaneja. Não, não é exagero. Não era como hoje em que músicas ditas sertanejas se propagam por várias mídias. Na década de 1950, os que dispunham de rádio ouviam programas sertanejos e, por aqui, havia os circos e o auditório da Rádio Cultura, na esquina das Avenidas Herval e 15 de Novembro, com apresentações e encenações sertanejas. A televisão engatinhava; o lazer se resumia aos circos, às apresentações de duplas sertanejas e ao cinema.
            Diante de tanta batida de viola e cantoria naquela boca de sertão, a jovem Maringá começou a atrair muitas duplas sertanejas de São Paulo. Apresentar-se por aqui era certeza de casa cheia e cachê garantido. O Hotel Paulistano, que ficava ao lado da Praça Raposo Tavares, tornou-se o destino da maioria delas. Com o passar do tempo, ganharam intimidade com o gerente do hotel, Antônio Martim Filho. Conhecido por Lenço Verde, ele se tornou empresário artístico das duplas na região, acertando shows e apresentações em circos.
 O músico e pesquisador musical Saulo Sandro Alves Dias, 45, de São Paulo, se interessou por um detalhe dessa história. Graduado e mestre em música, Doutor em Educação e pós-doutor em música pela Unicamp, ele soube que Tião Carreiro criou o pagode de viola em Maringá. Frequentador assíduo da Cidade Canção, o parceiro de Pardinho permanecia meses no Hotel Paulistano, de onde partia para apresentações na região. Nas horas de folga, Lenço Verde ia com ele, de jipe, levar roupa do hotel para lavar.
- O Tião era um sujeito muito simples que, inclusive, me ajudava em pequenas tarefas no hotel – dizia Lenço Verde.
A pesquisa de Saulo rendeu um documentário que acaba de ser lançado em São Paulo. “A mão direita do Itapuã – um caminho possível para conhecer o ritmo do pagode” revela como o pagode de viola foi criado em Maringá. O filme de 22 minutos exibe dois personagens que perfazem a história: o animador e apresentador sertanejo Orlando João Zenaro Manin, 78, o Coronel do Rancho, e Ozório Ferrarezi, 78, o Zorinho, que por muitos anos formou a dupla Zezinho e Zorinho, e hoje é o maestro Itapuã, professor de música em Santa Carmem (MT).
Coronel do Rancho, na gerência da Rádio Cultura, acompanhava os ensaios de Tião Carreiro numa salinha nos fundos da emissora.
- Tião era um sujeito inquieto. Pegava a viola, mexia e remexia nas cordas, até que um dia notei uma batida diferente, e ele me contou que aquele estilo se chamava pagode -.
A batida diferente vinha dos ensaios entre Tião e Itapuã, no Hotel Paulistano.
Um dia Tião lhe disse que tentava criar um novo ritmo na viola, mas os violonistas não se acertavam no acompanhamento.
- Então pedi a ele que tocasse a novidade pra mim. Ouvi por um instante o repique da viola e não pensei duas vezes em complementar com o violão aquele ritmo parecido com rumba espanhola e aí foi um casamento perfeito, dando origem ao pagode de viola -, conta Itapuã.
            Itapuã afirma no documentário que visitara Tião no hospital em São Paulo pouco antes de ele morrer, em 1993. O violeiro nunca disse publicamente que o maestro o ajudara a criar o pagode, mas lhe teria feito uma revelação durante a visita no hospital.
- Ele me disse: ‘quero que todos saibam que este moço foi meu parceiro na criação do pagode de viola’ e nunca reivindicou seus direitos -.
Itapuã se emociona com a revelação do então parceiro, dizendo não fazer questão do reconhecimento público.
- O que importa é minha amizade com o Tião, que foi muito bonita e possibilitou essa parceria - afirma. Em 1956, viria o primeiro disco em 78 rotações de Tião Carreiro e Pardinho, com as músicas: “Boiadeiro Punho de Aço” e “Cavaleiros do Bom Jesus”. Ali, já podiam ser notados os primeiros acordes do pagode que ganharam perfeição em 1960 com “Pagode em Brasília”, clássico de Teddy Vieira e Lourival dos Santos.
            Saulo diz que não pretendia incluir o norte e noroeste do Paraná nas pesquisas que realiza sobre música, mas ao saber da parceria entre Tião e Itapuã na criação do pagode seus planos mudaram.
- Este fato, que julgo ser bastante importante para a compreensão da história da música sertaneja, ocorreu em Maringá - diz o pesquisador, acrescentando que a música sertaneja tornou-se muito presente em toda esta região, acompanhando o ciclo econômico do café e os empreendimentos da Companhia Melhoramentos Norte do Paraná.
            - A Rádio Cultura de Maringá, por exemplo, tocava o cancioneiro caipira para atender ao grande número de migrantes que ocupou a região, que já eram ouvintes da música de viola -.
            Ele pretende continuar pesquisando a música sertaneja no norte e noroeste do Paraná. Para Saulo, as modas campeiras “Paraná do Norte” e “Filão de Ouro”, ambas do compositor Diogo Mulero, o Palmeira, dão ideia acerca da visão de mundo que permeia o cancioneiro de matriz cultural caipira.
- Diogo Mulero e Luizinho (Palmeira e Luizinho) foram pioneiros entre as incontáveis duplas que ‘faziam o norte do Paraná’ - uma expressão típica entre as duplas que se hospedavam no Hotel Paulistano, que ficava ali na Rua Joubert de Carvalho, do lado da Praça Raposo Tavares -, arremata o pesquisador. Mário de Almeida, parceiro na realização do documentário, muito contribuiu para a qualidade final do trabalho.  

O pesquisador Saulo Alves lança documentário sobre criação do pagode de viola, em Maringá


Zorinho, atual maestro Itapuã, entre a dupla Milionário e Zé Rico, foi parceiro de Tião Carreiro 
O animador sertanejo Orlando Manin, o Coronel do Rancho, diz que testemunhou a criação do pagode de viola em Maringá, por Tião Carreiro, na década de 1950, quando o violeiro, com seu parceiro Pardinho, vinha à cidade com frequência 

Tião Carreiro, que, segundo o documentário de Saulo, criou o pagode de viola em Maringá











segunda-feira, 3 de julho de 2017

O DIA EM QUE A CIDADE VIROU SERTÃO


Tinoco, mito da música caipira, foi homenageado em Maringá, em 2009, com show cuja renda foi revertida para tratamento de saúde de sua mulher, Nadir, que estava com câncer

(Texto e foto: Airton Donizete)


Tinoco posa para foto na Cerealista Pantaneira, de Maringá; ele esteve na cidade para show no Clube Olímpico, em 2009, cuja renda foi destinada para tratamento de saúde da mulher dele, Nadir, que viria a morrer logo depois, vítima de câncer




O telefone toca. Era o Aníbal, compadre do Tinoco, convidando o Fregadolli (da Revista Tradição) para almoçar na Cerealista Pantaneira. No cardápio, frango caipira e polenta. Mas a atração principal era o próprio Tinoco que se preparava para o show em sua homenagem no Clube Olímpico, de Maringá. A renda do evento foi revertida para custear tratamento de saúde de sua mulher, Nadir, que estava com câncer.
 Eu fui junto, pois era a oportunidade de entrevistar Tinoco, um dos últimos representantes da música caipira. De camisa vermelha, calça branca e óculos escuros, nos aguardava. Ele autografava alguns DVDs que seriam vendidos no show, mas logo me convidou para ir a uma salinha ao lado, pois tem dificuldade para ouvir.
Pena que o tempo era curto. Tinoco tinha de almoçar e cumprir alguns compromissos antes do show. Um personagem como ele é uma espécie de poço cujo fundo ainda não foi atingido. Sempre é possível cavar mais um pouco. E lá fui eu com minha cavadeira, ou melhor, meu gravador.
José Perez, o Tinoco, nasceu em 19 de novembro de 1920 em Platânia (SP) e João Salvador Perez, o Tonico, em 2 de março de 1917 em São Manuel, no mesmo Estado. Começaram a cantar como Irmãos Perez, mas logo foram batizados pelo Capitão Furtado, apresentador do programa “Arraiá da Curva Torta”, na Rádio Tupi.
Não demorou muito, e o palhaço Saracura lançou o bordão: ‘Dupla Coração do Brasil’. O apresentador Dárcio Campos passou a chamá-los de ‘Os expoentes máximos da música sertaneja’. Daí em diante, a história é longa e só mesmo Tinoco para nos contar um pouco dela, bem ao seu estilo com aquela linguagem caipira que não se ouve mais. Afinal, pelo menos por um dia, a cidade virou sertão. Veja trechos do dedo de prosa, a seguir.

Fale um pouco da carreira de Tonico e Tinoco?

TINOCO – Nossa carreira começou quando me conheci por gente. Naquele tempo, não tinha foinha. Minha mãe era índia. Eu cantava fininho e o Tinoco mais grosso. A gente fazia versinho assim: “O tatu casou com a onça, a onça ranhou o tatu”.
Nós morava na roça, no sertão de São Manoel. Apredemo compor, tocar, sem ouvir ninguém. Então, sempre falo: quem deu a mão pra nóis foi Deus. Abraçamo o dom que Deus nos deu. Foram 72 anos de carreira.
Platânia fica a 15 quilômetros de São Manuel. Eu andando lá com o prefeito vi uma casinha de madeira onde nóis moramo 80 anos atrás. Aí, o prefeito desmontou ela e levou pra Platânia e fez uma casa curturar. Lá, está todo nosso acervo. Nas paredes, tem o sinal da fumaça da lamparina. O mesmo fugão de lenha onde minha mãe cozinhava. A taipa onde nóis esquentava fogo. Naquele tempo, não tinha cuberta pra aquecer. Tudo isso aconteceu na década de 40 no começo da nossa carreira.

A carreira de vocês deslanchou quando o Capitão Furtado batizou-os?

A gente já cantava antes, mas ali começou tudo. Ele deu nome e levou nóis pra gravar. Foi o primeiro passo. Foi na Rádio Difusora, que depois passou a chamar Tupi. Era do grupo das Emissoras Associadas comandadas por Assis Chateaubriand. Ele disse que a gente precisava de um nome bem caboclo.  
E deu certo. Tamos aí até hoje. Digo tamos porque depois que o Tonico morreu, vai fazer 14 anos no próximo dia 13 de agosto, eu me senti obrigado a manter a estrada de Tonico de Tinoco.
E Deus me ajudou. Gravei três CDs cantando a voz do Tonico fazendo a segunda e a primeira. Tive uns parceiros, mas não deu certo. Agora, eu faço dupla: Tinoco e Deus. O amor do povo é uma beleza. Você vê a juventude, 80% no meu show. E nossas músicas, não têm uma que inventamos. É tudo história de vida. Por isso que elas entram no coração e não sai mais.
      
Tonico e Tinoco vieram muitas vezes ao Norte do Paraná?

Nossa... Nóis ajudamo a desbravar isso aqui. Quando nóis vinha aqui tavam derrubando mato. Olha, tudo é coisa por Deus. Os pais e o filho mais velho vinha comprar terra nesse trecho de Londrina a Mandaguari. Vinha com dinheiro pra pagar a terra. E já contratava camarada pra derrubar mato. Tudo isso a gente acompanhava.

E Maringá?

Vim pra cá quando não tinha estrada. Só jipe pra chegar. Muita gente acabava de chegar de carroça. Se a família era grande, vinha três, quatro carroças. Uma trazendo mantimento. Tinha mais dois cavalos amarrado atrás; quando um cansava, ponhava o outro. Eu e o Tonico não tinha onde comer. Então, eu chegava lá onde as carroças tavam na horinha do almoço. Eles convidava pra almoçar, e eu levava um caldeirão pra trazer, era pra comer no outro dia.
Eu com o Tonico levava uma caneca só pra beber água. Em qualquer riozinho de beira de estrada você baixava e bebia. Não tinha poluição.

Você disse que as músicas de vocês contam histórias reais, por que hoje não se faz mais músicas assim?

Não... hoje é tudo descartavi... Tem cantor que repete uma linha 10, 20 vezes. Outro só quer chacoalhar a bunda pra dançar. Mais, nóis, Tonico e Tinoco sempre desviamo disso. Não é só agora, não. Lá atrás também.

Certa vez, a gravadora quis que vocês usassem uma roupagem moderna e vocês não aceitaram?

É... houve isso. Foi quando o Roberto Carlos e a Jovem Guarda estourou. Por que essa roupa lumiante aqui? Quis saber. A gravadora (Continental) falou: “Vou mudar vocês”. Eu falei:”Mudar como?”. Vocês vão sair num carro sem capota pra mostrar o novo visuar. Falei, não. Para, para...
Depois disso, esperei dois anos pra gravar. Até passar aquela onda.

Quantos discos Tonico e Tinoco gravaram?

Não dá nem pra contar. Quando fizemo 50 anos de carreira era 80 LP e quase 300 de 78 rotações. Aqueles que têm uma música de cada lado. Temos bastante também daqueles disquinhos que saiu na década de 70, aqueles que tinha que pôr um peso em cima da agulha pra conseguir tocar. Músicas? Contando tudo que gravamos e fizemos passa de 1500.

Batidas na porta. É o compadre (do Tinoco) Aníbal que vem chamar Tinoco para almoçar, pois um canal de TV espera-o para gravar. Tenho de encerrar a entrevista. À noite, centenas de fãs aplaudiram-no no Clube Olímpico. Acompanhado de Juliano César, Márcia Mara, Zé Paulo, Gilberto e Gilmar, Léo e Giba e Teodoro e Sampaio, Tinoco cantou alguns de seus principais sucessos. Segundo a coluna DIA-A-DIA, do saudoso jornalista Edson Lima, o evento arrecadou R$ 49.585,00.
     


segunda-feira, 12 de junho de 2017

VIDAS ERRANTES



Moradores de rua de São Paulo e Maringá revelam histórias angustiantes e contam como enfrentam o desafio de dormir ao relento e andar sem destino pelas cidades


(Texto e fotos Airton Donizete)




Morador de rua  em São Paulo, que tem pelo menos 15 mil na mesma situação

- A produção de “refugo humano” ou, mais exatamente, de seres humanos refugados, os que não puderam ou não quiseram ser reconhecidos, os que não obtiveram permissão para ficar, é um produto inevitável da nossa sociedade. É consequência inseparável da modernização, efeito colateral da construção da ordem e do progresso econômico - diz trecho na contracapa do livro “Vidas desperdiçadas”, do sociólogo polonês Zygmunt Bauman.
Caminhando pela Avenida São João, centro de São Paulo, uma cena me faz refletir sobre as palavras que lera no livro de Bauman. Passa da meia-noite. Um pombo solitário belisca resquícios de comida em volta do cobertor encardido de um andarilho que dorme na calçada.
Ué, mas o pombo não dorme? Indaguei-me. Pelo jeito, não. Até as aves se adaptam à rotina de São Paulo. À noite, talvez, evite a concorrência na disputa por restos de comida na calçada. Durante o dia, teria de disputá-lo com outros pombos que ali vivem.
 A cena do pombo lembra os moradores de rua da capital paulista, cuja existência é um desafio constante. Alguns puxam carrinhos com papéis que juntam para vender; outros dormem debaixo de marquises ou em algum canto onde possam se acomodar.
Eles pedem esmolas nos semáforos ou sentados na calçada. A Praça da Sé é uma espécie de reduto deles. Ali, uns falam sozinhos ou fazem gestos como se estivessem discutindo com alguém. De repente, se revoltam e esmurram o invisível com socos no ar.
Há os que preferem o silêncio e a desconfiança. Talvez escaldados pelas agruras das ruas, evitam conversas. Mas há os sempre prontos a falar, desabafar. Eu, o professor Almir e o irmão dele, Júlio, caminhamos pelo Pátio do Colégio (centro). Naquele local, os padres jesuítas levantaram a primeira construção de São Paulo. Muitos moradores de rua ali. Alguns vivem até em barracas improvisadas.

Vejo um sujeito de cabelos pintados de vermelho. Simpático, ele topa falar. De Vitória (ES) veio para São Paulo tentar carreira de cantor. O sucesso não lhe sorriu. Douglas Silva, 32 (foto acima), lançou um CD, mas a gravação “não virou”. Sem emprego e dinheiro, restou-lhe a rua.
- Mas não sou vagabundo - defende-se. - Durmo embaixo de um abrigo na calçada, dividindo espaço com outros moradores de rua. Vez ou outra chega alguém me dizendo: “cantor não liga, não, vou cheirar um pó aqui”. Eu fico na minha. Não uso drogas -.
De volta à Praça da Sé. Um homem puxa um carrinho de catar papel com uma cachorra amarrada ao lado. Renildo Conceição, 66, vive na rua. A cachorra Vanessa o acompanha há três anos. Gorda e pelo liso, ele diz que a cadela é tratada com carne e ração, que ganha no comércio.
- Quando peguei ela era bebê. Virou minha companheira. Dorme do meu lado e, se necessário, me defende – diz ele, enquanto Vanessa late sem parar com cachorros que passam perto do carrinho.







Voltei à região da Praça da República. Na Rua 24 de Maio, encontrei o Ângelo Tadeu (foto acima), um paulista de 50 anos nascido na capital. Princesa, Neguinha e Laika estão amarradas ao seu carrinho de carregar papel. Elas latem com quem se aproxima. Ele diz gostar de animais, e as cadelas são companheiras fiéis nas andanças pela cidade.  
Solteiro, diz morar na rua há 35 anos. Ele conta que desavenças com a família o levaram a sair de casa. – Não dá certo, não. Eles lá (os parentes) e eu aqui – afirma. Trabalhou por muitos anos em um depósito de construção, mas perdeu o emprego e não conseguiu voltar ao mercado de trabalho. Sem dinheiro e casa foi morar na rua.
- Uma vida sofrida – reclama. - Eu fui assaltado umas dez vezes. No Inverno, a situação se agrava, o que ajuda, graças a Deus, é o coração bom das pessoas, que doam cobertores e roupa de frio pra gente -, diz, ressaltando que não falta comida para as cadelas, que estão castradas e gordas. – O povo dá ração, osso e até carne -. A venda de papel lhe rende cerca de R$ 15,00 por dia.
- É pouco, mas dá pra se virar – declara ele, afirmando não consumir bebida alcoólica nem drogas. – Evito porque essas coisas fazem mal. Eu bebia cachaça, mas fiquei doente um tempo, tive de tomar remédio e então parei de vez -.  





Maringá também tem moradores de rua. Um deles é Paulo Luís do Prado, conhecido por Zé Mochila (foto acima). Estava eu o radialista Rogério Rico numa padaria, na Avenida Herval, ele se aproximou. Rico que o entrevistara em seus programas de rádio, o apresentou a mim. Nascido em Floriano, distrito de Maringá, ele não sabe precisar quanto tempo vive nas ruas, mas deixou a família com 17 anos.
Com 56 anos, Prado diz que uma igreja evangélica lhe causou uma decepção e o fez desanimar da vida. Por algum tempo ficou internado num hospital psiquiátrico. Com dois irmãos em Sarandi e um em Cascavel, ele diz viver de pequenos bicos e do Bolsa Família, auxílio do governo federal que lhe rende R$ 85,00 por mês. Diz não consumir bebida alcoólica e cigarro, o que lhe permite economizar e guardar uns trocados na poupança.
A mãe dele ficou viúva três vezes. O primeiro marido, pai dele, se matou nas margens do córrego Taquaruçu, em Floresta, onde sua família morava. Ele carregou uma espingarda cartucheira, amarrando um barbante no gatilho e no dedo do pé. Encostou o cano no ouvido e disparou a arma, morrendo no local.
- Eu tinha um ano e só lembro que nossa casa ficou cheia de gente para o velório e eu engatinhando debaixo do caixão do meu pai – conta.
Prado permanece em Maringá, mas de vez em quando viaja pelo Brasil. Conhece Rio Grande do Sul, Espírito Santo, Rio de Janeiro e até a Argentina. A rua lhe é familiar, mas também lhe traz dissabores. Assaltaram-no quatro vezes. A experiência o levou a tomar cuidado ao escolher um local para dormir.
Ele evita permanecer ao relento, desprotegido. Se não conseguir pernoitar em albergues ou outros lugares de acolhimento, procura marquises de postos de combustível e borracharias. Diz que nesses locais se sente mais seguro, pois está próximo de gente.  
Solteiro, ele quer se casar. Diz que até os 60 anos encontrará a mulher “da sua vida”. Antes, quer fazer uma cirurgia para extrair uma hérnia na virilha que lhe incomoda e uma verruga no rosto. Outro sonho é ser pastor evangélico, apesar da decepção religiosa que sofreu e sobre a qual prefere não comentar.
- Eu tenho o dom do Espírito Santo. Agora sinto um calor no corpo. É o Espírito Santo se manifestando – afirma ele no momento da entrevista. Leitor da Bíblia e de gibis, Prado diz também gostar de música. Amado Batista e Roberto Carlos são seus cantores prediletos.  
Um hábito dele é falar de gastronomia. Durante esta entrevista, ele citou algumas receitas. Por exemplo: bater leite com ovo e trigo misturado ao polvilho de mandioca resulta num delicioso bolo. Para ele, preparar tempero é fácil. Basta misturar alho, shoyu, vinagre, sal e pimenta do reino ou cebola. Se o interlocutor tiver paciência de ouvir é uma dica gastronômica atrás da outra.

"REINSERÇÃO SOCIAL É A SAÍDA", DIZ PROFESSORA


A professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Maringá (UEM), Ana Lúcia Rodrigues, 55 (foto abaixo), e coordenadora do Programa de Mestrado em Políticas Públicas, da mesma instituição, e do Observatório das Metrópoles, Núcleo da UEM, diz que os moradores de rua de Maringá estão desprotegidos e a melhor maneira de amenizar o problema é a reinserção social. Entrevista a seguir.




Como está a situação dos moradores de rua em Maringá?

Desprotegidos e desassistidos pela assistência social, considerando que há uma política nacional para a população em situação de rua, aprovada pelo decreto número 7053/2009 do Ministério de Desenvolvimento Social. Pela qual, diversos projetos e recursos são disponibilizados aos municípios.
Em Maringá, são três projetos nacionais implantados: o Centro POP Rua, que atende durante o dia com serviços especializados que reúnem equipe de psicólogos, assistentes sociais, educadores sociais, pessoal de abordagem, entre outros. São oferecidas diversas atividades no local, como higiene, alimentação, contato com familiares, busca de reinserção, orientações e encaminhamentos para serviços públicos.
A Casa de Passagem (antigo Albergue), lugar para dormir que já abrigou mais de 100 pessoas por noite atualmente atende apenas 30. Há ainda o Portal da Inclusão, onde as pessoas ficam durante um ano, morando em uma casa alugada pela Prefeitura, atendidos por equipe técnica, para serem reinseridas no mercado de trabalho e na sociedade.
Também este projeto poderia incluir mais de 100 pessoas, mas Maringá optou por abrigar apenas dez. É muito pouca gente nessa situação na cidade, o que permite ao poder público enfrentar o problema e dar repostas eficientes. Não será com a repressão, a violência ou a velha prática da passagem para irem embora que a questão será resolvida.   

Frequentemente se ouve dizer que moradores de rua é um problema complexo. Qual é a solução para ele?

É complexo, sim, pois as pessoas nessa condição reúnem um conjunto de vulnerabilidades. São pobres e, a maioria, desempregada; dependentes químicos; muitos têm problemas graves de saúde. Mas por meio de investimento público é possível responder às dificuldades que elas enfrentam.
Também é necessário ampliar vagas nos espaços públicos de atendimento; criar lavanderias coletivas em alguns pontos da cidade, onde eles próprios possam lavar e secar suas roupas; instalar geladeiras nas calçadas em que possam depositar alimentos para que eles consumam; construir pequenas estruturas cobertas e abertas, nas praças públicas, com bancos e ganchos para dependurar redes, entre outras medidas. Todas as estruturas com manutenção e limpeza públicas.
Mas a melhor politica é a reinserção social, pois nas duas pesquisas que realizamos em Maringá, em 2015 e 2016, 92,5% e 93,3% disseram que desejavam sair da rua.      

No caso de Maringá, qual o perfil dessa gente?

Constatamos que 90% são homens; 30% são brancos e 65% pretos ou pardos; 50% têm ensino fundamental incompleto; 13% ensino médio; 3,5% nenhuma escolaridade; 20% fundamental completo e 0,5% superior.
            Não conseguimos abordar todas as pessoas. Abordamos e entrevistamos 160 em 2015 e 117 em 2016. Há uma estimativa de que havia nos dois momentos cerca de 200 pessoas nas ruas de Maringá, mas observamos que em 2017 esse número vem aumentando. Estamos organizando nova pesquisa este ano, que será realizada até julho.


MAIS DE 15 MIL MORAM NAS RUAS DE SP; 291 EM MARINGÁ

A Assessoria de Imprensa da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS) informou que o Censo da População em Situação de Rua da Cidade de São Paulo, em 2015, detectou 15.905 pessoas nessas condições. O órgão diz que é um assunto complexo, levando em conta a peculiaridade de cada pessoa nesta situação.
No entanto, informa que a gestão atual tem como meta melhorar e ampliar os serviços já existentes na cidade e, além disso, dois programas específicos para essa população já estão em andamento: o "Espaço Vida" e o "Trabalho Novo".
         Diz ainda que os atuais Centros de Acolhida serão reconfigurados e "transformados" em Espaço Vida, melhorando sua estrutura, ampliando os serviços e as áreas comuns. Assim, o padrão de qualidade será maior do que o existente, além de pretender que sirvam como campo de preparação para o trabalho em diversas áreas.
         O programa Trabalho Novo promove a capacitação e inserção dos moradores em situação de rua no mercado de trabalho, proporcionando emancipação e conquista de autonomia dessas pessoas, como empregado ou empreendedor. Formalização de parcerias com empresas de diversos segmentos já acontece. O trabalho em conjunto entre o setor público e o privado é fundamental para a realização do objetivo.
Acrescenta que, atualmente, a SMADS realiza abordagem de moradores em situação de rua em toda a cidade. Eles são encaminhados aos serviços com foco em cada segmento específico: pessoas sozinhas, famílias, idosos, crianças e adolescentes, população LGBT e imigrantes.
 Maringá
A Assessoria de Imprensa da Prefeitura informou que a Secretaria de Assistência Social e Cidadania (Sasc) identificou 291 moradores de ruas em Maringá, em 2016. Declara que a Prefeitura oferece o Centro de Referência Especializado para Pessoas em Situações de Rua (Centro Pop). No local, são realizadas ações para a reconstrução de projetos de vida, atividades de higiene, alimentação, lazer, interação e reflexão social, fortalecimento de vínculos interpessoais e familiares e, consequentemente, a reinserção social.
As pessoas são encaminhadas à Associação Aliança de Misericórdia e à Casa de Passagem Santa Luiza de Marilac. O Centro Pop também oferece, diariamente, Serviço Especializado em Abordagem Social para adultos. Em 2016, a Sasc registrou 2.332 atendimentos (1.763 migrantes) pelo Centro. Em 2017, 310 (130 migrantes).



domingo, 21 de maio de 2017

ELES PUSERAM MARINGÁ NA VANGUARDA DA ARTE

Um mineiro, um paulista, um japonês, um alemão e um italiano, na longínqua década de 1950, deram formato à história artística de um embrião de cidade, que crescia exuberante em meio àquele inóspito sertão

Texto: Airton Donizete

Fotos: Acervo da Gerência de Patrimônio Histórico e AD

Maringá não é apenas “Cidade Canção”; é uma cidade de sorte. Pelo menos, em se tratando de arte. Logo após sua fundação, em 10 de maio de 1947, cinco artistas de peso se estabeleceram aqui. Na década de 1950, eles se destacaram cada em sua área, transformando Maringá numa referência artística. A influência deles foi fundamental para construir uma identidade da arte local.
O historiador João Laércio Lopes Leal assim se refere aos anos 1950 no livro “História artística e cultural de Maringá – 1936/1990”: “Um decênio farto em figuras, acontecimentos, produtos e práticas relacionados ao cultivo desse universo tão rico e revelador de um tipo de mentalidade peculiar, pois as manifestações artístico-culturais numa área onde essas não são prioridades, nem mesmo levadas a sério, e, mesmo assim, teimam em acontecer, só demonstra o quanto interessante é sua história”.
Na literatura, Ary de Lima. Claro, na mesma época, surgiram eminentes figuras das letras: Jorge Ferreira Duque Estrada, Antônio Augusto de Assis (A. A. de Assis), Antônio Mário Manicardi, Dari Pereira, Benedito Moreira de Carvalho, Zaia Carvalho, Galdino Andrade, Verdelírio Barbosa, João Amaro de Farias, entre outros. Mas Lima, digamos assim, foi o representante mor da área naquela década de 1950.

O mineiro talentoso

Ari de Lima, mineiro militante político e precursor da literatura maringaense


 Natural de São Sebastião do Paraíso (MG), Lima foi professor, político, poeta e jornalista. Nasceu em 1914 e, aos 14 anos, era respeitado professor de português e literatura. Na sua cidade natal foi radialista, jornalista e político, elegendo-se suplente de deputado estadual. Ele era da União Democrática Nacional (UDN), oposição ao Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), de Getúlio Vargas.
Em 1952, veio para Maringá, assumindo a gerência do Banco Mineiro da Produção. A cidade fervia com gente de muitas partes do Brasil. Em 1954, deixou o banco, retomou a carreira de professor, dedicando-se ao jornalismo e à política. Na Rádio Cultura, comandou o programa “Marcha dos Pioneiros”, narrando a saga dos colonizadores de Maringá; apresentava também “Coisa de outro mundo”, no qual com ironia denunciava mazelas locais, regionais e nacionais.
Com o poeta A.A. de Assis redigia a revista “Maringá Ilustrada”. Em parceria com Aniceto Matti compôs a letra do “Hino a Maringá”. Compôs também os hinos de Loanda (PR), São Sebastião do Paraíso (MG) e Sinop (MT). Autor dos livros: “Sol poente e sol nascente”, “O sertão ressuscitou”, “Meu Brasil brasileiro – poemas caboclos”, “Discursos parlamentares”, “Melancólico destino das Sete Quedas”, “Panorama florestal brasileiro”, “Turismo – nova aurora de esperanças”, “O desbravador Ênio Pepino”, “O Dia Nacional do Folclore” e “O verde está morrendo”. 

 O italiano que veio por acaso

Professor Aniceto veio da Itália e ministrou as primeiras lições de música na "Cidade Canção"

Nascido norte da Itália, na região de Piacenza, em 1920, o maestro Aniceto Matti é precursor da arte musical em Maringá, na década de 1950. Com nove anos de idade, ganhou seu primeiro piano. Aos 28 anos, concluiu, num conservatório da Itália, o curso superior em música. Também cursou licenciatura poética e dramática. Em 1948, ele mudou-se para Buenos Aires, onde viveu por cinco anos com tios e primos.
Com 33 anos, em 1953, veio passear em Londrina. Queria conhecer as plantações de café do norte do Paraná, o que o levou a pegar carona num caminhão e vir até Maringá. Caiu uma chuvarada fazendo muita lama. Ele pretendia voltar a Londrina, mas, talvez por causa do mau tempo, não encontrou o caminhoneiro que o trouxera. 
Queria retornar à Argentina, mas o pioneiro Joaquim Dutra o incentivou a ficar e lhe arrumou um emprego na Rádio Cultura. Dava aula de piano e acordeão e cuidava da parte artística do “Clube do Caçula”, um dos programas de sucesso da emissora. Conheceu Ary de Lima, que trabalhava na emissora, e o professor Geraldo Altoé, que o convidou para dar aula de Educação Artística no Colégio Estadual Gastão Vidigal. Matti e Lima venceram o concurso para a escolha do hino a Maringá.

Apaixonado pelo teatro

Calil Haddad contribuiu para o desenvolvimento da arte cênica em Maringá

Nascido em Jaú (SP), em 1926, Calil Haddad era o 11º filho de uma família de 12 irmãos, cujos pais eram Regina e Nassib Haddad. Eles vieram de Jacarezinho, norte do Paraná, e chegaram a Maringá em 1946. Calil cursou o primário e o ginásio em Jacarezinho, destacando-se nas disciplinas de francês, latim e matemática.
Nassib fora professor na Síria e, em Maringá, tornou-se comerciante de tecido com a Casa São Jorge, no Maringá Velho. Formado em direito, Calil não exerceu a profissão, tornando-se professor. Simpatizante do comunismo, a paixão dele, o teatro, tornou-se realidade ao conhecer Victor Andreata, um alemão radicado no Brasil, que se dedicava à arte circense.
O historiador João Laércio destaca no livro “História Artística e Cultural de Maringá – 1936/1950”: “Victor ensinou-lhe desde a percepção do potencial da pessoa para atuar, até a forma como lidar com os atores, a fim de extrair o máximo rendimento na hora do ensaio e no momento de execução da peça”.
Superando as dificuldades da época, Calil, fundou, em 1956, o grupo “Teatro Maringaense de Comédias (TMC)”. Em 1959, encenaram a peça “Irene”, de Pedro Bloch. Nos anos seguintes, entre outras, apresentaram “As árvores morrem de pé”, do escritor espanhol Alejandro Casona. Participavam do TMC: Lair Krambeck, Darcy Urizzi, Jerônimo da Silva, Élvio Lemos, Edna Pereira, José Klenckner, Carmen Lopes, Lucia Pires, Edno Gonçalves Fernandes, Raimundo Tavares, Simone Motta, Joerson José Inocêncio, Moacir Cardoso, Zeneide Corrêa, Célia Rosa de Souza e Domingos Fernandes. 

O cronista da imagem

Kenji Ueta contou a história de Maringá registrando os principais eventos da cidade

A arte fotográfica chegou a Maringá em 1940 com os japoneses: Shizuma Kubota, Tutomu Sanuki e um teuto-brasileiro Augusto Eduardo Eidam. Mas eles encerram o negócio no começo da década de 1950. Shizuma e Eidam, inclusive, venderam seus estúdios para Kenji Ueta, que se tornou uma espécie de cronista fotográfico daquela Maringá que começava a se desenvolver. 
Seu Kenji, como é conhecido, fala baixinho. Às vezes, se enrosca em algumas palavras. Mas bater papo com ele vale a pena. Kenji chegou a Maringá, em 1951. Um homem da lida. Após a morte dos pais trabalhou na roça, na região de Ribeirão Preto, interior do Estado de São Paulo. Nascido no Japão, em 5 de agosto de 1927, chegou ao Brasil aos cinco anos após viajar por 48 dias no navio Santos Maru.
De lá veio para Maringá, onde começou a trabalhar numa loja de tecido. Ele e os irmãos Yukio e Tetsuaki juntaram algum dinheiro e entraram para o ramo de fotografia. Logo nasceu o Foto Maringá, no qual está até hoje. Kenji se tornou fotógrafo de eventos. Fotografava casamentos, batizados, festas de debutantes e tudo que aparecesse naquela festiva boca de sertão. Mas tinha tino jornalístico e de historiador.
Diferentes de outros fotógrafos que registraram o nascimento da cidade, ele fotografava com objetivo de guardar as imagens para mostrar no futuro. “Imaginei, do jeito que Maringá está crescendo, mais tarde, o povo vai querer saber como era antes”, racionou. “Então, comecei a registrar a transformação das ruas e das casas de comércio”.
 Ele acredita na máxima de que uma imagem vale mais do que mil palavras. Aliás, vai além. Diz que uma imagem vale por 100 mil palavras. “Não adianta só contar é preciso mostrar”, declara. “Aí entram as imagens que provam o que a gente fala”. Não faltam provas. O fotógrafo tem um arquivo com milhares de cenas de Maringá. Muitas inéditas.

O pintor da terra vermelha

Edgar Osterroht fugiu da guerra da antiga Prússia e retratou com sua pintura a história de Maringá

Dirigi-me à rua Santa Maria, número 27, centro de Maringá, onde  vive o artista plástico Edgar Werner Osterroht. Atrás de uma mesa, numa sala espaçosa com quadros pelas paredes, ele me recebeu.  Não revela a idade, mas pouco importa. Nasceu nos anos 1930 em Tilsit, na antiga Prússia, que foi abolida no fim da Segunda Guerra Mundial. Fugindo dos russos, a família tentou imigrar para o Canadá, mas preferiu o Brasil e, em 1951, chegou a Maringá.
Eles chegaram à cidade na jardineira da Viação Garcia. De Apucarana a Maringá foram cinco horas. Edgar levou algum tempo para se adaptar àquela terra vermelha e ao imenso sertão que se formava na região. Para quem chegava, parecia o fim do mundo. Principalmente, para alguém que vivia na Europa.
Engenheiro, ele foi topógrafo e urbanista da Companhia Melhoramentos Norte do Paraná (CMNP) até a década de 1960. Ajudou a criar mais de 15 cidades na região e, entre outros, trabalhou com os engenheiros Vladimir Babkov e Walter Kreiser, que, segundo ele, é um dos inventores do helicóptero. “Foi uma época difícil, mas interessante porque tudo o que se ia fazer era uma aventura”, lembra. “Pensei em ir para São Paulo trabalhar mesmo que fosse de engraxate, mas acabei ficando”.
Casado, dois filhos, Edgar é exímio desenhista. Aos dois anos já rabiscava figuras de carro num papel. Dom que o acompanhou e o transformou num grande artista plástico. Quando trabalhava na CMNP aproveitava as horas vagas para desenhar. “Não havia rádio, televisão, jornais, revistas e nem bar para tomar cerveja, então eu desenhava para não enlouquecer”, conta.
Os desenhos de Edgar retratam a Maringá de outrora. Como ele mesmo diz no prefácio de um dos seus livros: “Lembrando um pouco daquelas cidades de madeira do famoso faroeste norte-americano”. Os desenhos dele se transformaram em dois livros que revelam a história da cidade. Lançados em 1997 e 2007.

Quem chega ao seu escritório anexo a casa dele depara com um quadro do diretor da CMNP, Alfredo Nyffeller, e outro do engenheiro Vladimir Babkov, da mesma empresa. Mas as pinturas não se limitam a pessoas. Retratam ruas, avenidas e famosos estabelecimentos comerciais da cidade. Por exemplo, o Hotel Maringá, no Maringá Velho.
Edgar realizou a primeira exposição de arte de Maringá no Restaurante Lord Lovat, que funcionava na Avenida Tiradentes. Na época, a arte causava espanto. “Aquele alemão não tá bem da cabeça”, diziam. “Pintar casas sujas de barro velho”! Mas aos poucos ele conquistou muitos admiradores e hoje é uma referência da história de Maringá.

quinta-feira, 11 de maio de 2017

TEMPERATURA VERBAL SOBE NA FRIA CURITIBA


Depoimento de Lula à Justiça Federal, na capital do Estado, inflama ânimo de militantes prós e contras o ex-presidente, que trocaram farpas pelas ruas

Texto e fotos Airton Donizete

Fui a Curitiba de carona num ônibus fretado por militantes que iriam à manifestação em prol do ex-presidente Lula. Saímos de Maringá por volta da meia-noite e meia de quarta-feira. Na entrada de Curitiba, parada na Polícia Rodoviária. Revista das bolsas e interior do ônibus. Um passageiro portava uma máscara antigás. Os policiais ficaram na dúvida. Pode? Não pode? Após muita confabulação e troca de informações pelo celular com superiores, liberaram o equipamento. Afinal, se é algo destinado à proteção do indivíduo, então, pode, não é?
Seguimos até a rua Getúlio Vargas, em um terreno que fica entre a Rodoferroviária e o estádio do Paraná Clube. Ali, militantes do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST) levantaram um acampamento. O ônibus ficou lá. Segui a pé com um grupo até a Praça Santos Andrade, no centro, onde havia uma manifestação pró-Lula, organizada pela Frente Brasil Popular. Caveirão, helicóptero, snipers. Um gigantesco aparato de segurança. Pelo menos três mil homens entre policiais federais, militares, rodoviários federais, guardas municipais e agentes de trânsito de Curitiba espalhados pela capital do Estado. 

Pelo caminho, até a Praça Santos Andrade, se revelava a tensão em torno do evento. Alguns motoristas os chamavam de vagabundos; outros gritavam o nome do juiz Sérgio Moro, que iria interrogar Lula. Havia também os que bradavam: - viva Lula!. A troca de insultos permaneceu por todo o percurso. O clima da rua refletia setores da mídia. A revista Veja da última semana traz Moro e Lula frente a frente na capa. Azul contra vermelho. O jornal Metro, edição de Curitiba, do dia do depoimento do petista, o estampa em vermelho na capa junto a Moro, de azul.
O movimento Curitiba Contra a Corrupção organizou um ato em frente ao Museu Oscar Niemeyer, a cerca de um quilômetro do prédio da Justiça Federal, local do interrogatório, e a três quilômetros da Praça Santos Andrade. Havia cerca de 300 manifestantes, mas o clima tenso se espalhou pela cidade. Tomou conta das conversas. Em um ponto e outro era possível ouvir discussões pró e contra Lula. O nível subia e descia. Alguns se exasperam nos termos, resultando em bate bocas. Um menino que jogava bolinha num semáforo discutiu com uma mulher.
A senhora bem vestida dizia estar do lado de Lula. O menino falava que o ex-presidente era culpado; ela retrucou: - foi o presidente que mais fez pelos pobres -. Um senhor que passava por ali disse imaginar o contrário.  - Ué, pensei que ela era contra o Lula -, afirmou. Mais adiante, um homem gesticulava e esbraveja ao celular: - Esses vagabundos, tudo vagabundos -, repetia. Não deu para ouvir, mas parecia se referir aos manifestantes pró-Lula.
Do alto de um prédio uma mulher rodopiava uma bandeira do Brasil. Não sei de que lado ela estava, mas a julgar pelas cores. Entre os contra Lula havia muito amarelo. Parei na Praça Santos Andrade. Pensei: - o que vou fazer na Justiça Federal? Pensei.  -Não estou credenciado; vou ficar lá de longe fazendo o que? Melhor ficar aqui pelo centro mesmo -.
Perto do almoço, subi pela Rua XV de Novembro. Umas três quadras pra frente deparei com quatro manifestantes contrários a Lula. Eles disseram que foram à Justiça Federal; voltaram para o almoço e, mais tarde, retornariam para acompanhar o depoimento. Para eles, Lula não seria preso naquele dia. Eles acreditam que o processo contra ele se prolongue. Não quiseram arriscar uma data para a conclusão do episódio.
O ato na Praça Santos Andrade se arrastou por nove horas. Com discurso de políticos do PT e partidos aliados. Cantores se revezavam entre um intervalo e outro. Destaque para os acordes de Pereira da Viola. Um mineiro de Teófilo Otoni, no Vale do Mucuri, que tem uma maneira peculiar de pontear a viola. Toca muito.
De resto, sobrou o esperado pronunciamento de Lula. O depoimento dele à Justiça Federal demorou cinco horas. Por volta das 20 horas, o líder petista chegou ao local. A praça estava apinhada de gente. Segundo os organizadores da manifestação, havia 50 mil pessoas vindas de várias partes do Paraná e do Brasil. A ex-presidente Dilma também veio. Antes dela, falou Eduardo Suplicy, vereador mais votado de São Paulo na última eleição. Bastante aplaudido.
Enfim, Lula. “Estão cansados”? perguntava a locutora do evento. Eu estava, e muito. Havia viajado quase a noite toda. O petista encerrou o discurso pedindo a verdade e que provem do que o acusam.
- Não quero ser julgado por interpretações; quero ser julgado por provas -, disse, acrescentando: - Se um dia tiver que mentir pra vocês, eu quero que um ônibus me atropele ali na rua -.
Ele deixou o palco ovacionado pelos gritos: “Lula, guerreiro do povo brasileiro!”. Eu me juntei ao grupo que me deu carona para esperar o ônibus e retornar a Maringá. Chegamos por 5 horas da manhã. Que dia tenso! Sensação de final de campeonato de futebol.

Apesar da alta temperatura verbal na fria Curitiba, não houve incidentes entre manifestantes. Apenas alguns rojões foram lançados contra os militantes do MST acampados. Três barracas foram danificadas e duas pessoas tiveram ferimentos leves.  

FOTOS

Lula discursa na Praça Santos Andrade 

Segundo organizadores, havia 50 mil no 
ato em prol do ex-presidente da República

Pereira da Viola, um dos artistas que se apresentaram no ato

Militantes vieram de várias partes do Paraná e do Brasil

Máscara antigás, pode ou não pode? Enfim, liberada

Policiais revistam ônibus que seguia para a manifestação, em Curitiba

Poucos compareceram à manifestação em apoio à Operação Lava Jato, no Museu Oscar Niemeyer (Foto: UOL)