Morte
repentina de antigo morador de distrito de Apucarana, que colecionava mais de
30 mil objetos antigos, e pretendia transformar
casa em espaço para abrigá-los, revela incertezas sobre projeto
(Donizete Oliveira: Texto e fotos)
Antônio Carlos mostra antigo cortador de tabuinhas, usadas antigamente para cobrir casas
Uma
sexta-feira de sol, céu límpido e um vento brando, que assoprava levemente as
plantações à beira da estrada. Típico dia de inverno. Vanderlei conduz o carro
que me leva até o distrito de Caixa de São Pedro, a 22 quilômetros de
Apucarana. Disseram que lá existe um morador que coleciona objetos antigos. À
primeira vista, imaginei alguém que juntasse algumas velharias. Aparelhos de
rádio, televisão, toca-discos, despertador, panela de ferro ou algo parecido,
que vez ou outra vemos por aí. Chegamos ao local indicado. O dono dos tais
objetos se aproxima. Nos convida para ir à pracinha do distrito. Iria falar da
história do local e, em seguida, nos levaria para ver as peças de museu.
A
história serve de assento. Entre as cadeiras, um banquinho de madeira, com
quatro pés encaixados, feito por descendentes de escravos, tem mais de 100
anos. Antônio Carlos Ribeiro, 62 anos, puxa a prosa. Filho do ex-vereador e
pioneiro Antônio do Carmo Ribeiro, nascido em Diamantina (MG). Atraídos pelo
sertão do norte do Paraná, ele veio ainda menino com a família morar no povoado
que mais tarde seria batizado de Caixa de São Pedro e se tornaria distrito de
Apucarana.
Os
cafezais se alastravam. Gente chegava, e não era pouca. De 1960 até meados dos
anos 1970, mais de sete mil pessoas moravam na localidade. Entre elas, o cantor
e compositor Zé Rico, que mais tarde faria dupla com Milionário e se tornaria
sucesso em todo o Brasil. Seu Domingos, que chegara ao futuro distrito em 1932,
era pai de Geni, que se casou com Antônio do Carmo, cujo apelido era Juim. Ele tinha uma alergia que o deixava com a pele
ressecada. Para amenizar o problema, usava um sabonete chamado benjoim, daí passaram
a chamá-lo de Juim.
Antônio
Carlos convidou alguns moradores para ajudá-lo a contar a história do distrito.
Ele diz que o vínculo do local era mais forte com Arapongas, que fica a 18
quilômetros. Por ali passava uma estrada que chegava a Mandaguari. As condições
eram precárias. Barro ou poeira atrapalhava os viajantes. A energia elétrica
chegou na gestão do prefeito Valmor Santos Giavarina (1969-1973). Após alguns
anos, encanaram a água de uma mina que até hoje abastece o distrito, chegando
às casas dos moradores. Os borrachudos eram um tormento. As picadas deixavam as
pernas avermelhadas. Em pessoas mais sensíveis arruinavam e se transformavam em
feridas.
A
professora Vera Lúcia de Paula, 63 anos, nascida em Arapongas, que vive no
distrito desde criança, compara o local a um filme em transformação. “Mas a
essência a gente não perde, os moradores antigos daqui dão valor à vida
tranquila e às amizades”, diz, apontando para a igreja da pracinha central. A
primeira, de madeira, construída na década de 1930, deu lugar à atual de alvenaria
erguida nos anos 1950. “O vínculo de permanência com o local ajuda a preservar nossa
história”, acrescenta.
Mesma
opinião tem Daniel Rodrigues Pereira, 65 anos, nascido em Caixa de São Pedro.
Diz que a vida no distrito é um retrovisor que o faz lembrar dos tempos em que
as crianças caminhavam mais de 10 quilômetros para ir à escola. “Mas essas
dificuldades nos fizeram persistir e cultivar amor pelo local”, afirma. A
maioria vivia na roça, cuidando da lavoura de café. Nos tempos de colheita, uma
multidão se reunia. Uns apanhavam os grãos, outros os rastelavam, abanavam e
ensacavam. Para alcançar os galhos mais altos usavam escadas de madeira. “Era
uma vida com poucos objetivos, mas sossegada”, diz Pereira.
A
história do distrito começou antes de Apucarana, município ao qual pertence.
Explica Antônio Carlos, que cita a atuação da Companhia de Terras do Norte do
Paraná (CTNP), que fundou as primeiras cidades do norte do estado. “Tanto que
existe aqui na região sítios arqueológicos, com resquícios de povos originários
conhecidos e presenças humanas mais antigas, não identificadas”, afirma. Professor
aposentado, formado em química e especialista em história da arte, ele fala da
versão mais aceita sobre o nome do distrito.
O
primeiro aparelho de telefone do local tinha o formato de uma caixa de madeira.
A linha vinha de Londrina até Mandaguari. Os agentes da CTNP o utilizavam para
falar com outras cidades. “A caixa se popularizou tanto que deu nome ao
distrito”, diz Antônio Carlos. Um morador a doou ao museu da antiga Fecea de
Apucarana, que deu lugar ao campus da Universidade Estadual do Paraná
(Unespar). Com o fechamento do museu, a caixa de telefone foi cedida à
Prefeitura e está no espaço cultural do Cine Teatro Fênix, entre outros objetos
antigos.
Após
1 hora e nove minutos de prosa na pracinha central, Antônio Carlos nos convida
para visitar a casa em que guarda os objetos antigos que colecionou ao longo
dos anos. Ao abrir a porta, um cenário de volta no tempo. Ele calcula que haja mais
de 30 mil. “Nunca contei, mas se somar aos livros, discos em vinil e
fotografias passa deste número”, garante. Muitos ele adquiriu em viagens;
outros foram doados. Por exemplo, um gabinete de barbearia, cujo dono era Ângelo
Carmagnani, um antigo barbeiro de Apucarana. A neta dele lhe doou. Contudo, ele
parou de aceitar doações. “Só se for algo especial”, ressalva. “A quantidade
está de bom tamanho”.
A intenção dele é reformar a casa em que está o acervo, transformando-a em um museu. Ele, que diz saber a origem de cada objeto, afirma que o projeto está em andamento. “Sempre gostei de coisas antigas, de história e quero deixar um legado para as futuras gerações, e o que é melhor, aqui na Caixa de São Pedro, onde nasci”, declara. A preocupação em preservar a história o fez procurar proprietários de fotos regionais que fecharam. Ele revela que eles lhe doaram mais de 1 milhão de negativos. “Guardei tudo e será arquivado no museu que pretendo construir”.
A surpresa...
“A
arte é longa e a vida é breve” é um aforismo atribuído ao médico grego
Hipócrates. Ao concluir esta entrevista, mandei-a ao Antônio Carlos Ribeiro. Eu estava em dúvida com alguns dados que ele havia me passado. Ele leu e corrigiu. Dez dias depois, a publiquei na Revista Tradição, de Maringá, cuja circulação é mensal. Mas eis a surpresa.
Em 26 de agosto passado, após uma irmã dele notar que ele havia sumido, informou à polícia, que arrombou a casa e o encontrou morto no seu interior. Ribeiro morava sozinho no distrito. Teria sofrido um mal estar e morrido. Lamentamos. Uma pessoa entusiasta e cheia de vida, que tinha o sonho de construir um museu. Não sabemos ainda com quem ficarão seus milhares de objetos. Afinal, “a arte é longa e a vida é breve”.
Alguns objetos do acervo que seria transformado em museu:
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Rádio Philips da década de 1940, valvulado |
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Gramofone, de 1920, trazido da antiga Checoslováquia |
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Pote de barro feito por escravos com mais de 200 anos |
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Enchedor de linguiça, de 1940, doado por moradores de Apucarana |
Imagem de São Pedro, que pertenceu à 1ª igreja do distrito |
Primeiro telefone usado em Caixa de S. Pedro
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Suporte de coador de café, conhecido por Mariquinha Banquinho encaixado que pertencia a escravos |
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Moinho Renault, fabricado na França, em 1860 |
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