O médico torturado, que perdeu um hospital em Mandaguari, e o ex-vereador de Apucarana, sequestrado na frente dos filhos, recordam os suplícios dos anos de chumbo, cujo cinquentenário ocorreu em 31 de março de 2014
(Texto e fotos: Airton Donizete)
Dizem
que o golpe que culminou com a ditadura civil/militar no Brasil ocorreu em 31
de março, mas testemunhas revelam que a data correta é entre 1º e 2 de abril.
Na madrugada de 2 de abril de 1964, o então presidente do Senado, Auro Moura
Andrade convocou o Congresso para sessão extraordinária e pronunciou a célebre
frase: “Declaro vago o cargo de presidente da República”.
Detalhe,
o presidente João Belchior Marques Goulart, que seria deposto, se dirigia ao
Rio Grande do Sul. Portanto, estava em território nacional. Mas este é assunto
para outra reportagem. O objetivo aqui é mostrar como alguns personagens foram
perseguidos pela ditadura civil/militar no Brasil (1964/1985).
Em
11 de setembro de 1975, por volta da meia-noite, o médico Osvaldo Alves, que
morreu, aos 78 anos, em 23 de março último, voltava de um casamento em Arapongas. Na frente
da casa dele, em Mandaguari, havia um fusca com três homens.
De
acordo com Alves, entre eles estava o capitão Ismar Moura Romariz, do 30º Batalhão
de Infantaria Mecanizado, de Apucarana. Eles pediram a ele que fosse socorrer
uma pessoa que estava muito mal. Ele entrou no carro e, três quadras depois, o
fusca foi interceptado por dois camburões. Os militares o puseram num deles e
seguiram para Apucarana.
O
médico não sabia o destino. Estava encapuzado e algemado. Demoraram mais de
quatro horas para percorrer os 35 quilômetros entre Mandaguari e o 30º BIM.
“Era tortura psicológica, eles ficavam dando voltas”, recorda. “No trajeto,
todo momento, diziam que iam me matar”.
Curitiba
Ao
chegar ao quartel, em Apucarana, puseram Alves em outro carro. Embora dissessem
que o levariam a São Paulo, seguiram para Curitiba. Permaneceu por alguns dias
numa prisão, que ele não se recorda.
De
lá foi para o presídio do AHU, onde ficou detido por dois anos. Por quatro
meses, esteve na mesma cela do escritor Ildeu Manso Vieira, morto em 2001.
Os
militares queriam que ele falasse das atividades de Ildeu Manso, na época,
ligado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). Ele resistiu e foi torturado com
choque elétrico. “Não aguentava o cheiro de carne queimada, mas logo percebi
que aquele cheiro vinha do meu próprio corpo”, conta.
Segundo
o médico, um dos torturadores era o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que
havia deixado o comando do DOI-Codi, de São Paulo, para atuar em outras regiões
do país. Alves também acusa o então capitão Romariz, do 30º BIM. “Ele torturou
muita gente aqui no Norte do Paraná e foi o responsável pela minha prisão”,
afirma.
Hospital faliu
Mas
o pior estava por vir. Em Mandaguari, Alves era dono do Hospital São Francisco.
Na época, um dos mais equipados da região. Com a ausência do médico, a
administração desandou, e o hospital faliu.
Alves
diz que nunca participou do PCB, apenas tinha contatos com alguns dos seus
integrantes na região. Para ele, a condenação que lhe foi imposta revela como
agiam os militares. Qualquer um podia pagar por coisas que não cometera.
Como
indenização, ele recebe uma pensão do governo Federal. O dinheiro ajuda a
manter uma obra de caridade, que fundou em 1984. A Comunidade Social
Cristã Beneficente promove várias ações sociais.
Atendimento
médico, odontológico, psicológico, assistência social, reforço escolar, oficinas
de literatura e esporte são algumas delas. “Hoje, sou um homem convertido a
Deus e, meu propósito, é ajudar a humanidade”, acrescenta.
Sete
meses e um dia
O
ex-vereador Pedro Agostineti Preto, 77, vive numa casa espaçosa no centro de
Apucarana. Atrás do homem solícito e bom de prosa, existe um passado que ele não
esquece.
Em
14 de outubro de 1975, um camburão estacionou em frente da casa dele, por volta
da meia-noite. Militares o prenderam (ele prefere dizer que o sequestraram) na
frente dos dois filhos e o levaram para Curitiba.
Os
400 quilômetros ,
entre Apucarana e a capital do Estado se transformaram na viagem mais longa da
vida dele. Durante todo o percurso, os militares o ameaçavam de morte. “Eu
fiquei mais preocupado com a família”, afirma. “Se alguma coisa acontecesse
comigo, meus filhos ficariam desamparados”.
Em
Curitiba, Pedro ficou preso num antigo quartel da cavalaria do Exército. Após
10 dias, o levaram para a antiga prisão do “AHU”, onde permaneceu por sete
meses e um dia. Ele perdeu a conta dos depoimentos que concedeu aos militares.
Como
castigo, tinha de assistir às sessões de tortura dos companheiros. “Usavam esse
jogo psicológico com todo mundo”, conta. “Quando eu era interrogado por um
agente, sempre de madrugada, outro, ao seu lado, ficava fazendo testes na
máquina de choque para me amedrontar, e isso realmente dava medo”.
Choques no ânus
A
pior coisa que ele diz ter visto foi um torturador introduzir um cano com
dispositivo elétrico dentro do ânus de um companheiro de cela. “Eles faziam
isso para que o choque fosse dado lá dentro, evitando deixar marcas externas”,
afirma.
Ele
também viu um preso beber na marra urina de um torturador. Os que iam para o
pau-de-arara vestiam uma espécie de bata sem nada por baixo. Quando ficavam
dependurados, a vestimenta caía, e os órgãos genitais ficavam expostos. “Aí
aplicavam os choques”, acrescenta.
Diz
que não foi torturado fisicamente porque reconheceu um dos torturadores, que
fora delegado em Apucarana. “Não que ele quisesse ser bonzinho comigo, mas,
talvez, pelo medo de ser identificado posteriormente não deixou que me
torturassem”, declara.
Casa vigiada por agente
disfarçado de sorveteiro
Enquanto
Preto estava preso, a família dele, em Apucarana, recebia ameaças constantes.
“Diziam que todos seriam mortos, coisas desse tipo”, recorda-se. Um agente do
extinto Serviço Nacional de Informações (SNI) ficava de plantão próximo da casa
dele com um carrinho de sorvete. Ele dava sorvetes para os filhos na tentativa de
obter informações sobre o pai.
A
prisão ocorreu porque o acusaram de pertencer ao Partido Comunista Brasileiro
(PCB). “Sempre tive admiração pelos comunistas, mas eu era do antigo MDB”, diz.
“Fui vítima de uma conspiração do então governo do presidente Geisel, que
desencadeou uma série de prisões para demonstrar à população que os comunistas
queriam derrubar o governo, o que era um absurdo”.
Um
emissário do PCB o procurara com proposta de que ele organizasse o partido na
cidade. Uma reunião chegou a acontecer numa chácara de sua propriedade para viabilizar
o partido em Apucarana, mas não houve consenso. “O que eles queriam era o que
nós, do MDB, também queríamos, ou seja, a redemocratização do país”, afirma
Pedro.
Julgado pelo Supremo Tribunal Militar
(STM), Preto foi absolvido por falta de provas. No começo da década de 1980,
foi anistiado pelo presidente João Baptista Figueiredo.
Em
1998, o então deputado estadual Beto Richa apresentou projeto de lei na
Assembléia Legislativa que obrigou o Estado a reconhecer e pagar indenizações a
seus ex-presos políticos ainda vivos ou a suas viúvas.
Preto,
a exemplo de Osvaldo Alves, recebeu R$ 30 mil de indenização. Mas ele espera
resultado de uma ação que tramita na Justiça, pela qual pede outra indenização
ao governo Federal.
Quando
foi preso, Preto era imobiliarista e, ao retornar à cidade, viu seu negócio
falido. “Não tinha quem cuidava dos meus negócios aqui”, diz. “A prisão me
deixou numa pior, sem dinheiro e condições de tocar a vida”.
Comissão da Verdade
Alves
e Preto dizem que a Comissão da Verdade instituída pela então presidenta Dilma
Roussef, cujo objetivo foi examinar e esclarecer graves violações contra os
direitos humanos entre 1946 e 1985, veio em boa hora. Ele e Alves, no entanto, temem
que forças ocultas atrapalhem o trabalho dos membros da comissão.
Para
Alves, embora o Brasil esteja vivendo uma democracia, as instituições ainda são
frágeis. “Pode ser que os membros da comissão tenham boa vontade, sejam pessoas
dignas, mas haverá muita resistência, principalmente, dos militares”, acredita.
Preto
acrescenta que a comissão é um avanço, mas teme que haja resistência de setores
da sociedade que até hoje resistem à democracia. “Mas confio no povo e nos
meios de informação, como a internet, que podem ajudar muito os membros dessa
comissão”.
(Reportagem publicada em abril de 2014
na Revista Tradição, de Maringá)
FOTOS:
O
médico Osvaldo Alves, que morreu recentemente, foi perseguido pela ditadura e
perdeu um hospital, em Mandaguari
Preto foi sequestrado por militares na frente dos filhos, em Apucarana