sexta-feira, 28 de abril de 2017

O DIA QUE DUROU 50 ANOS



 O médico torturado, que perdeu um hospital em Mandaguari, e o ex-vereador de Apucarana, sequestrado na frente dos filhos, recordam os suplícios dos anos de chumbo, cujo cinquentenário ocorreu em 31 de março de 2014

 (Texto e fotos: Airton Donizete)


Dizem que o golpe que culminou com a ditadura civil/militar no Brasil ocorreu em 31 de março, mas testemunhas revelam que a data correta é entre 1º e 2 de abril. Na madrugada de 2 de abril de 1964, o então presidente do Senado, Auro Moura Andrade convocou o Congresso para sessão extraordinária e pronunciou a célebre frase: “Declaro vago o cargo de presidente da República”.
Detalhe, o presidente João Belchior Marques Goulart, que seria deposto, se dirigia ao Rio Grande do Sul. Portanto, estava em território nacional. Mas este é assunto para outra reportagem. O objetivo aqui é mostrar como alguns personagens foram perseguidos pela ditadura civil/militar no Brasil (1964/1985).
Em 11 de setembro de 1975, por volta da meia-noite, o médico Osvaldo Alves, que morreu, aos 78 anos, em 23 de março último, voltava de um casamento em Arapongas. Na frente da casa dele, em Mandaguari, havia um fusca com três homens.
De acordo com Alves, entre eles estava o capitão Ismar Moura Romariz, do 30º Batalhão de Infantaria Mecanizado, de Apucarana. Eles pediram a ele que fosse socorrer uma pessoa que estava muito mal. Ele entrou no carro e, três quadras depois, o fusca foi interceptado por dois camburões. Os militares o puseram num deles e seguiram para Apucarana.
O médico não sabia o destino. Estava encapuzado e algemado. Demoraram mais de quatro horas para percorrer os 35 quilômetros entre Mandaguari e o 30º BIM. “Era tortura psicológica, eles ficavam dando voltas”, recorda. “No trajeto, todo momento, diziam que iam me matar”.

Curitiba
Ao chegar ao quartel, em Apucarana, puseram Alves em outro carro. Embora dissessem que o levariam a São Paulo, seguiram para Curitiba. Permaneceu por alguns dias numa prisão, que ele não se recorda.
De lá foi para o presídio do AHU, onde ficou detido por dois anos. Por quatro meses, esteve na mesma cela do escritor Ildeu Manso Vieira, morto em 2001.
Os militares queriam que ele falasse das atividades de Ildeu Manso, na época, ligado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). Ele resistiu e foi torturado com choque elétrico. “Não aguentava o cheiro de carne queimada, mas logo percebi que aquele cheiro vinha do meu próprio corpo”, conta.
Segundo o médico, um dos torturadores era o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que havia deixado o comando do DOI-Codi, de São Paulo, para atuar em outras regiões do país. Alves também acusa o então capitão Romariz, do 30º BIM. “Ele torturou muita gente aqui no Norte do Paraná e foi o responsável pela minha prisão”, afirma.

Hospital faliu
Mas o pior estava por vir. Em Mandaguari, Alves era dono do Hospital São Francisco. Na época, um dos mais equipados da região. Com a ausência do médico, a administração desandou, e o hospital faliu.
Alves diz que nunca participou do PCB, apenas tinha contatos com alguns dos seus integrantes na região. Para ele, a condenação que lhe foi imposta revela como agiam os militares. Qualquer um podia pagar por coisas que não cometera.
Como indenização, ele recebe uma pensão do governo Federal. O dinheiro ajuda a manter uma obra de caridade, que fundou em 1984. A Comunidade Social Cristã Beneficente promove várias ações sociais.
Atendimento médico, odontológico, psicológico, assistência social, reforço escolar, oficinas de literatura e esporte são algumas delas. “Hoje, sou um homem convertido a Deus e, meu propósito, é ajudar a humanidade”, acrescenta.

  Sete meses e um dia

O ex-vereador Pedro Agostineti Preto, 77, vive numa casa espaçosa no centro de Apucarana. Atrás do homem solícito e bom de prosa, existe um passado que ele não esquece.
Em 14 de outubro de 1975, um camburão estacionou em frente da casa dele, por volta da meia-noite. Militares o prenderam (ele prefere dizer que o sequestraram) na frente dos dois filhos e o levaram para Curitiba.
Os 400 quilômetros, entre Apucarana e a capital do Estado se transformaram na viagem mais longa da vida dele. Durante todo o percurso, os militares o ameaçavam de morte. “Eu fiquei mais preocupado com a família”, afirma. “Se alguma coisa acontecesse comigo, meus filhos ficariam desamparados”.
Em Curitiba, Pedro ficou preso num antigo quartel da cavalaria do Exército. Após 10 dias, o levaram para a antiga prisão do “AHU”, onde permaneceu por sete meses e um dia. Ele perdeu a conta dos depoimentos que concedeu aos militares.
Como castigo, tinha de assistir às sessões de tortura dos companheiros. “Usavam esse jogo psicológico com todo mundo”, conta. “Quando eu era interrogado por um agente, sempre de madrugada, outro, ao seu lado, ficava fazendo testes na máquina de choque para me amedrontar, e isso realmente dava medo”. 
        
Choques no ânus
A pior coisa que ele diz ter visto foi um torturador introduzir um cano com dispositivo elétrico dentro do ânus de um companheiro de cela. “Eles faziam isso para que o choque fosse dado lá dentro, evitando deixar marcas externas”, afirma.
         Ele também viu um preso beber na marra urina de um torturador. Os que iam para o pau-de-arara vestiam uma espécie de bata sem nada por baixo. Quando ficavam dependurados, a vestimenta caía, e os órgãos genitais ficavam expostos. “Aí aplicavam os choques”, acrescenta.
Diz que não foi torturado fisicamente porque reconheceu um dos torturadores, que fora delegado em Apucarana. “Não que ele quisesse ser bonzinho comigo, mas, talvez, pelo medo de ser identificado posteriormente não deixou que me torturassem”, declara.
        

Casa vigiada por agente
disfarçado de sorveteiro

 Enquanto Preto estava preso, a família dele, em Apucarana, recebia ameaças constantes. “Diziam que todos seriam mortos, coisas desse tipo”, recorda-se. Um agente do extinto Serviço Nacional de Informações (SNI) ficava de plantão próximo da casa dele com um carrinho de sorvete. Ele dava sorvetes para os filhos na tentativa de obter informações sobre o pai.
A prisão ocorreu porque o acusaram de pertencer ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). “Sempre tive admiração pelos comunistas, mas eu era do antigo MDB”, diz. “Fui vítima de uma conspiração do então governo do presidente Geisel, que desencadeou uma série de prisões para demonstrar à população que os comunistas queriam derrubar o governo, o que era um absurdo”. 
         Um emissário do PCB o procurara com proposta de que ele organizasse o partido na cidade. Uma reunião chegou a acontecer numa chácara de sua propriedade para viabilizar o partido em Apucarana, mas não houve consenso. “O que eles queriam era o que nós, do MDB, também queríamos, ou seja, a redemocratização do país”, afirma Pedro.
         Julgado pelo Supremo Tribunal Militar (STM), Preto foi absolvido por falta de provas. No começo da década de 1980, foi anistiado pelo presidente João Baptista Figueiredo. 
         Em 1998, o então deputado estadual Beto Richa apresentou projeto de lei na Assembléia Legislativa que obrigou o Estado a reconhecer e pagar indenizações a seus ex-presos políticos ainda vivos ou a suas viúvas.
Preto, a exemplo de Osvaldo Alves, recebeu R$ 30 mil de indenização. Mas ele espera resultado de uma ação que tramita na Justiça, pela qual pede outra indenização ao governo Federal.
         Quando foi preso, Preto era imobiliarista e, ao retornar à cidade, viu seu negócio falido. “Não tinha quem cuidava dos meus negócios aqui”, diz. “A prisão me deixou numa pior, sem dinheiro e condições de tocar a vida”.




Comissão da Verdade


Alves e Preto dizem que a Comissão da Verdade instituída pela então presidenta Dilma Roussef, cujo objetivo foi examinar e esclarecer graves violações contra os direitos humanos entre 1946 e 1985, veio em boa hora. Ele e Alves, no entanto, temem que forças ocultas atrapalhem o trabalho dos membros da comissão.
Para Alves, embora o Brasil esteja vivendo uma democracia, as instituições ainda são frágeis. “Pode ser que os membros da comissão tenham boa vontade, sejam pessoas dignas, mas haverá muita resistência, principalmente, dos militares”, acredita.
Preto acrescenta que a comissão é um avanço, mas teme que haja resistência de setores da sociedade que até hoje resistem à democracia. “Mas confio no povo e nos meios de informação, como a internet, que podem ajudar muito os membros dessa comissão”.
(Reportagem publicada em abril de 2014 na Revista Tradição, de Maringá)

 FOTOS:

 O médico Osvaldo Alves, que morreu recentemente, foi perseguido pela            ditadura e perdeu um hospital, em Mandaguari


Preto foi sequestrado por militares na frente dos filhos, em Apucarana








sexta-feira, 14 de abril de 2017

UM TOM INUSITADO


Aos 80 anos, Tom Zé pulou, brincou, cantou, encantou e contou muitas histórias na FLIM, em Maringá, em 2016, mostrando que apesar da idade, continua um menino irreverente e cheio de vitalidade
Texto Airton Donizete
Fotos Wellington Carvalho
Não pude participar todos os dias da Festa Literária Internacional de Maringá (FLIM), em 2016. A programação estava repleta de boas atrações, mas fui apenas à palestra de Tom Zé. Auditório lotado. Gente de Maringá e região para ver o artista baiano. Artista é pouco para nominá-lo, tamanha sua arte irreverente.
Nascido em 11 de outubro de 1936, ele parece um menino. Pula, brinca, canta, encanta e conta histórias. Ao chegar ao auditório da FLIM, acompanhado do mediador da mesa, jornalista Marcelo Bulgarelli, Tom Zé brincou com a plateia:
- Mas vocês são uns bandidos, hein! Todo mundo aí pra me ouvir... agradeçam à secretária de Cultura, que me trouxe aqui. Obrigado, “maringuenses”!
Filho de sertanejos da pequena Irará, no recôncavo baiano, viu sua vida mudar, em 1925. Naquele ano, o pai dele ganhou na Loteria Federal. O talento o alçou a uma sólida carreira artística. Destacou-se na Tropicália, mas quem o descobriu foi o músico escocês David Byrne. A versatilidade do artista baiano o impressionou.
E tudo começou na loja que o pai dele abriu com o dinheiro da “sorte grande”. Ali, ele aprendeu a língua do povo sertanejo. Um jeito diferente de falar, igual aos personagens do monumental livro “Grande Sertão: Veredas”. Anos depois, Tom Zé conheceu o livro e ficou embasbacado com o que viu lá.
- Era o mesmo tagarelar daquela gente que se acotovelava no balcão da loja do meu pai. Que livro era aquele? Eu descobri que falava Guimarães Rosa.
Auditório em silêncio, olhares vidrados. Ninguém quer perder uma nesga da fala, que desfia história. Aristóteles, Arthur Clark, Augusto de Campo, Nikolau Sevchenko, um poeta francês (cujo nome não me lembro) e Euclides da Cunha. Ainda menino, ao deparar com “Os Sertões”, se assustou com a primeira parte: “A Terra”, linguagem árida, pesada; a segunda, “O Homem”, atraiu mais seu interesse, mas se apaixonou mesmo por “A Luta”.
Outra vez algo lhe chamara atenção. Se em Guimarães Rosa era a fala dos personagens; em Euclides da Cunha eram os próprios personagens. Percebeu que o povo dele (do sertão baiano) compunha o enredo traçado por Antônio Conselheiro e seus seguidores. Os sons perseguem-no. Se em Canudos balas assobiavam pelo ar; no auditório da FLIM, uma criança chora. A mãe sai do recinto tentando acalmá-la. O choro se transforma em gritos estridentes.
- Que roqueiro bom, hein! Se tivesse um desse pra botar num disco meu, brinca Tom Zé com a birra da criança e arranca aplausos da plateia.
Para ele, qualquer coisa se transforma em poesia.  Ingá Vans, Ingá Express, Odontorriso. Diz serem exemplos de poesia concreta que viu pela cidade. Então, nós, “maringuenses”, éramos poetas concretos e não sabíamos? Depois de uma aula de história regional, nacional e universal, uma canja do novo CD: “Canções eróticas de ninar”. Uma prévia do que seria o show logo mais à noite. Ah, quem quisesse comprar CD, livros e discos... a banquinha ali do lado.
- Depois eu autografo, avisa à plateia, cujo rosto denunciava os minutos nutridos de sabedoria vivenciados naquela manhã.
Antônio José Santana Martins nasceu Tom Zé. Está lá no site dele: Casualmente no final dos anos 1980, o disco “Estudando o Samba” foi ouvido pelo multiartista David Byrne, ex-Talking Heads, que perguntou por telefone a Arto Lindsay: “Que país é esse, que tem um artista assim e tão poucos conhecem?” E lançou sua obra nos Estados Unidos, com grande sucesso de crítica e público.
Então, pensando bem, Tom Zé é um sujeito com defeito de fabricação, o que lhe permite descobrir beleza em regiões estranhas, como disse Byrne. Demos graças à criação pelo tom da criatura. Um tom inusitado.

FOTOS
Tom Zé durante palestra na FLIM mediada pelo
jornalista Marcelo Bulgarelli