(Texto e fotos Donizete Oliveira)
Segunda-feira,
9 de dezembro de 2019, 11h10. Cheguei a Brumadinho. Cidade pacata, de 39.520
habitantes, a 62 quilômetros de Belo Horizonte. Na pequena rodoviária procurei um táxi. Um descia a rua ao lado. Acenei, e ele parou.
Disse
que queria ir à comunidade Córrego do Feijão, onde viviam 415 pessoas, pelo
menos até a tragédia anunciada, que a assolou. Relatório de Impacto Ambiental
divulgado em 2017 e revelado pela mídia indica que a Vale omitiu risco de
rompimento da Barragem da Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho, ocorrido em 25
de janeiro de 2019.
Thiago
Mendes da Silva, 34 anos, me conduziu num Pálio Weekend, ano 2014. Ele era
consultor de vendas e, há cerca de um ano, começou a trabalhar com o táxi.
Cobrou R$ 80 para me levar até a localidade do Feijão, a 15 quilômetros de Brumadinho.
Uma estrada pavimentada com rejeito de mineração, alguns buracos e quebra-molas
improvisados.
Para
ele, fazer aquele caminho é rotina, mas após o rompimento da barragem, tudo
mudou. Silva diz não reconhecer a paisagem. Ele sente falta de casas que via da
estrada e do vai e vem de gente. “Uns iam, outros vinham, havia mais vida”,
diz. “Hoje, a gente só vê tratores e máquinas escavando terra, o que é muito
triste porque eu era amigo de vários dos que morreram soterrados na lama”.
Uma
das principais ruas que corta o bairro do Feijão não existe mais. Sobraram
apenas montes de lama seca e rejeito de mineração. Homens com tratores da Vale
trabalham no local. “Aqui havia casas”, aponta Silva. “A lama levou tudo”. Com
uma velocidade de 106 quilômetros por hora a avalanche varreu o que tinha pelo
caminho.
Andar
pelo bairro rural do Feijão é saudar a tristeza. Pessoas cabisbaixas,
desconfiadas, revelam uma espécie de ressaca interminável. Falar sobre a
tragédia é reviver, rememorar a dor. Eles já falaram muito. Quantas perguntas!
Nos dias em que sucederam o rompimento da barragem, aquela comunidade esteve no
centro do mundo. Repórteres chegavam e saiam com bloquinhos de anotação, microfones,
gravadores, câmeras, fotos, filmagens...
Meu
desafio era encontrar alguém que perdera parentes disposto a falar sobre o
assunto. Tentei um, em vão; outro se esquivou; mais um, que pediu para eu
procurar uma associação que cuida dos parentes de vítimas do rompimento da
barragem. Senti que seria complicado, mas não desisti. Até que me indicaram uma
casa ao fundo, onde mora Noé, que perdera o filho soterrado na lama.
Dois
cachorros me recepcionaram latindo. Um senhor magro, cabelos grisalhos veio ao
meu encontro. Apresentei-me e expliquei o que queria, ele concordou em falar.
Difícil era compreender sua fala enrolada. Devagar fui decifrando sua pronuncia
resultado das sequelas de um acidente vascular cerebral (AVC), que sofrera
recentemente.
A
doença é uma das causas da tragédia que se abateu sobre Noé Henrique de
Oliveira, 61 anos. O dilúvio de lama que arrasou Brumadinho soterrou o filho
dele, Rodrigo Henrique de Oliveira, 30 anos. No momento em que a barragem
rompeu, ele estava no refeitório da Vale, e a lama cobriu tudo. Encontraram seu
corpo após 16 dias. Ele deixou a mulher, quatro filhos e uma tristeza sem fim
que arrasou a família.
Noé
diz que no dia que antecedeu ao rompimento da barragem, Rodrigo os visitou. Ele
foi à casa dos pais e conversou muito até por volta das 21 horas. “Parecia dizer
adeus”, conta. “Proseamos sobre vários assuntos, ele jantou, se despediu e foi
embora”. No outro dia, foram surpreendidos pelo aviso de que a barragem havia
rompido, e seu filho estava no refeitório.
Mas
o drama da família continuou. Cinco meses após o dilúvio de lama, Noé perdeu a
sogra, cuja doença se agravou com a morte do neto. Uma tia também doente não
suportou e morreu. “Homem de Deus, estou sem chão”, lastima, com os olhos
marejados. “Tem noite que me levanto e fico andando pela casa feito uma barata tonta,
numa angústia que não tem fim”.
O
que parece dar um pouco de alento à família é uma cachorrinha que criou cinco
filhotes. Eles andam pela casa e despertam a atenção de quem chega. Antes de o
repórter perguntar, Noé diz que recebeu pouca ajuda do que lhe prometeram. “Recebo
R$ 998 da Vale apenas”, reclama. “Nada paga o que a gente está passando, mas
tinha de ser mais, esse valor não dá pra nada”.
Uma
cena que não lhe sai da cabeça é a remoção dos corpos retirados da lama. Os
helicópteros os levavam, e os bombeiros os envolviam num plástico e os
penduravam num cabo instalado num campo improvisado próximo da comunidade do
Córrego do Feijão, de onde eram levados para identificação. “Ver aquele monte
de cadáver pendurados lá me dava um troço ruim, não posso lembrar daquilo, mas
sempre martela na minha cabeça”, afirma.
Despedi-me
de Noé e sua mulher, Maria das Dores Barbosa, 52 anos. Voltei a Brumadinho. Fui
fotografar o Rio Paraopeba, que corta a cidade. A lama o tingiu de vermelho.
Nas margens, há manchas pretas, cor da lama que correu logo após o rompimento
da barragem. Parei na ponte. Chuviscava. Do outro lado vinha uma mulher apressada
com uma sombrinha.
Esbarrei-me
nela e, ao me desculpar, disse que fazia uma reportagem sobre a tragédia de
Brumadinho, que até 28 de dezembro de 2019 deixara 259 mortos e 11
desaparecidos. “Não tenho palavras pra
descrever o que aconteceu, destruiu nossas vidas, nosso rio e nossa cidade”,
respondeu. Era Fátima Sodré, 56 anos, prima de Rodrigo, filho do Noé, que eu
entrevistara no bairro do Feijão.
Segundo
ela, que é cuidadora de idosos, Brumadinho não se recupera em menos de duas
gerações. Diz que além do primo perdeu amigos, o que lhe dá uma agonia
constante. “Que a barragem ia romper se sabia, o problema é que ninguém se
importou e deu no que deu”, diz. Quanto ao rio, ela acrescenta que não tem
esperança. “Olhe aí, acabou tudo, morreu tudo aí dentro, não tem o que fazer para
nosso Paraopeba voltar a ser o que era”.
Assim
segue a dolorosa saga da família de Noé e certamente dos demais que perderam
parentes, em Brumadinho. Diferente do herói bíblico, ele não se livrou do
dilúvio. A avalanche de lama levou o que ele tinha de mais precioso: o filho e arrasou
sua família.
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Noé clama pela morte do filho, Rodrigo, que foi soterrado pela lama |
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Debaixo da lama, em Brumadinho, ainda há corpos soterrados |
Moradores dizem que o rio Paraopeba nunca mais será o mesmo após a tragédia |
VALE DIZ ATUAR PARA REPARAR DANOS
A
Vale, por meio de sua assessoria de imprensa, afirma continuar trabalhando para
reparar integralmente os danos causados pelo rompimento da Barragem Córrego do
Feijão, com iniciativas para reestabelecer social e ambientalmente os
munícipios impactados, priorizando o diálogo próximo com as comunidades e o
poder público.
A
empresa diz seguir apoiando as ações do Corpo de Bombeiros e da Polícia Civil
na busca pelos 11 desaparecidos. Até o momento, 259 corpos foram identificados.
Em relação às indenizações individuais e trabalhistas, a empresa já celebrou
mais de 4.000 acordos, indenizando integralmente as pessoas. Nestas ações, já
foram despendidos recursos de cerca de R$ 2 bilhões.
Essas
pessoas têm à disposição o Programa de Assistência Integral aos Atingidos, que
dá suporte às famílias para que possam planejar seu futuro. O projeto oferece
planejamento e educação financeira; apoio para compra de imóveis; assistência
técnica rural, ao microempreendedor e às atividades de complemento de renda;
além de acompanhamento social. Até o momento, 650 pessoas já aderiram
ao programa voluntariamente.
A Vale
celebrou a prorrogação do auxílio emergencial, por 10 meses. A empresa entende
que a prorrogação do acordo reforça seu compromisso com a reparação dos danos
causados pelo rompimento da barragem, de forma célere e abrangente com
iniciativas para reestabelecer social e ambientalmente os munícipios
impactados, priorizando o diálogo próximo com as comunidades e o poder público.
O
acordo foi homologado pela 6ª Vara da Fazenda Pública, e contou com a
participação do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, Ministério
Público Federal, Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais, Advocacia Geral
da União, Advocacia Geral do Estado de Minas Gerais, Defensoria Pública Federal
e Estado de Minas Gerais.
A
empresa apresenta também à comunidade do Córrego do Feijão um projeto de
requalificação urbana chamado território-parque, um conceito que inclui ações
de melhoria da infraestrutura (reforma, pavimentação e urbanização de ruas,
casas e estruturas), reativação econômica e desenvolvimento do turismo local,
além de cuidado com a memória das vítimas do rompimento da barragem.
O Ministério Público, de Minas Gerais, denunciou por crime doloso, funcionários da Vale. Ninguém está preso.