segunda-feira, 11 de novembro de 2024

Pitoco repousa à sombra de um pé de incenso

 

(Texto e foto: Donizete Oliveira)

O ano era 2010. Eu vi um cachorro amarelo que dormia enrolado num monte de areia, na calçada da rua da casa da minha irmã. No outro dia, ele se aprochegou do portão dela, bebeu água e comeu ração num pote. Ela o deixa ali para cachorros que passam por lá. Mas o Pitoco, assim o nomeamos por causa do toco de cauda, ficou. Dormia na frente da grade. Inquieto e individualista, não convivia com outros cães. Qualquer aproximação era motivo de briga. Arrumou uma treta com um cão do vizinho. Certa vez se atracaram na rua. Minha irmã tentou separar, e um deles a mordeu no braço.

            Pitoco tinha outro problema. Corria atrás de motoqueiros. Eu via o dia em que alguém o mataria. Antes que o pior ocorresse o adotamos. Veio para o quintal. Tornou-se conhecido no bairro. Eu o levava para caminhar; as pessoas o chamavam pelo nome. Após um tempo, eu ia correr oito, dez quilômetros; ele junto. Uma vez o levei para correr a Prova 28 de Janeiro, de Apucarana. Comigo, ele correu uma volta de cinco quilômetros em 28 minutos. Na chegada, ofereceram melancia; ele comeu um pedaço.

            A convivência se fortaleceu. Pitoco não era de pular, lamber. Manifestava carinho balançando o toco de cauda. Mas se apegou a mim. Tanto que passou a dormir no meu quarto, no chão, numa almofada que adaptamos para ele. Forte e destemido, continuou retinente a outros cães. Ao completar 15 anos, um dos bagos começou a inchar. Levei-o ao veterinário, que recomendou cirurgia. Ele a fez; o Pitoco se curou. Mas a idade havia chegado. Começou a cambalear. Mesmo assim, latia com cães que passavam na rua.

            Aos 17 anos, a cara começou a ficar levemente branca. Às vezes, a gente o carregava para mudar de lugar. Uma bolinha na gengiva o incomodava. Levamos ao veterinário, que disse se tratar de um câncer. Extraí-lo com cirurgia era recomendado, mas o problema era a idade. Podia não resistir. Medicou, mas o tumor cresceu. Até que ele não podia mais mastigar os alimentos. A gente dava comida pastosa, mas o problema se agravou. Passamos noites de agonia, reanimando-o. Ele parecia entender que a gente estava ali, ajudando-o.

            A gente não autorizou a eutanásia. Entendemos que o processo natural da morte, apesar do sofrimento, é mais sensato. Mais de 15 cachorros já morreram em casa sob nossos cuidados. Digamos que nos tornamos especialistas em cuidar até o fim. De humanos também. Ajudamos a cuidar do meu irmão e minha irmã nos seus últimos dias. Uma vez entrevistei a monja Coen, que me disse: “O cuidado é um ato de amor, fazer algo para um ser vivo que não vive sem essa ajuda”. Cito de memória, mas foi mais ou menos isso que ela disse.  

            De manhã, minha irmã me acordou, dizendo que o Pitoco havia se encantado. Fui vê-lo, e ele ainda estava quente. Remorei ali uma história de vida. Quando ele surgiu na rua e o acolhemos no quintal deveria ter uns três anos, conviveu 14 anos com a gente. Uma vida feliz. Talvez por isso tenha vivido tanto. Após enfaixa-lo com um pano, o enterramos no quintal, à sombra de um pé de incenso. Ao lado foram enterrados o Snnopy, a Neguinha e a Bibi. Outros enterramos no sítio do meu irmão. E continuamos a missão, de cuidar até o fim. De humanos e animais...

Pitoco na frente do quintal da casa da minha irmã, em Apucarana


sábado, 4 de maio de 2024

João do Rio no churrasco de Rio Bom

     Sentei. Junto dos amigos Zé Lino, Aranha e Benito, que não via fazia meses. Prosa vai, prosa vem, espeto fincado num pedaço de madeira, churrasco que chegava às mesas. Já fui à Festa do Rio Bom algumas vezes, mas desta vez me pus a assuntar. E percebi que festa em uma cidadezinha com pouco mais de três mil habitantes pode ser chique. Quase um desfile, de moda mesmo, daqueles concorridos. Mulheres de vestidos longos, botas até o joelho, joias no pescoço, na mão, maquiagem nos trinques. Homens de chapéu caubói, camisa Lacoste, calça jeans e botas de bico fino.

Mas o que mais me impressionou foram as bolsas. Comecei a contar as marcas. Dei conta, não. Muita grife. Barracas apinhadas de gente. Atendentes se virando pra aprontar mais uma mesa. Hora do almoço. Eles agarravam um pedaço redondo de madeira. Colocavam sobre um cavalete. Pronto.  Mais gente acomodada. E dão lhe bolsas cujos zíperes, fivelas e logotipos ofuscavam meus olhos. Louis Vuitton, Gucci e Colcci... entre as que vi.  

Saí com Benito pra ir ao banheiro do lado de fora. Numa mesa,  um casal. A mulher de vestido longo laranja com uma bolsa Gucci acomodada no meio da mesa. O parceiro, alto, de chapéu branco, com jeito de pouco uso. As costeletas pretas se encontravam com a barba. Chegou o churrasco, espetado no suporte de madeira ao lado da bolsa chique. Balbuciei no ouvido do Benito: você que desce pro Paraguai, comprar bugiganga, manja: é pirata? Ele bateu o olho, refletiu uns segundos e devolveu, chacoalhando a cabeça na horizontal.

Nem podia. As joias no pescoço não mentiam. Ao virar a cabeça, brilhavam. Óculos miúdos. Hastes finas, quase invisíveis. Bebia uma água mineral; ele, um refrigerante. Pouco se falavam. Voltamos do banheiro, um sol de estalar mamonas. Benito consultou o celular, 31 graus. No palco armado do lado de fora, uma dupla cantava “Caminheiro” na levada do tal sertanejo universitário. Me lembrei de Zilo e Zalo e de Anair de Castro Tolentino, que a compôs com aqueles versos: “Por favor diga pra mãe/Zelar bem do que é meu”. Tolentino, que se foi no ano passado, deixou centenas de composições.

De volta à mesa. Outro casal despontou. Ele de chapéu de couro preto, óculos escuros, camisa polo branca, do jacarezinho, calça jeans e botas azul escuro. Ela com um vestido verde e uma bolsa Louis Vuitton. Sumiram em meio a pá de gente que chegava e saía. Dali a pouco, Zé Lino, irretocável reclamão, disse que em relação a outros anos, o espeto havia encolhido. De um fizeram dois, questionou. Retruquei. Não era hora de contenda, mas de curtir a festa que estava pra lá de boa.  

Após mais algumas cervejas chamei a mulher. Me despedi dos amigos e fui dormir no banco do passageiro. Ela que não bebeu, conduziu a caminhonete. Fui embora entusiasmado, confesso. Fazia anos que não via tamanha elegância num churrasco de domingo. Na imensa barraca, só faltou um cantor, a caráter, acostumado aos acordes de uma churrascaria. Apreciei demais. Até a próxima. Cochilei no banco do passageiro com os versos do saudoso Tolentino na minha cabeça, na voz de Zilo e Zalo: ““Por favor diga pra mãe/Zelar bem do que é meu”.

Nota: Texto que recebi do amigo João do Rio, professor que nasceu em Minas Gerais, viveu em Campinas (SP) e, a convite de parentes, curte sua aposentadoria numa chácara na barranca do Rio Ivaí...


Churrasco no Espeto de Bambu, em Rio Bom. Foto: João do Rio

 

quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

UMA MULHER MARCADA PARA RESISTIR...

 Símbolo da luta pela terra no Brasil, Elizabeth Teixeira, que completou 99 anos, continua a luta do marido, assassinado em 1962, a mando de latifundiários, que deu origem ao documentário de Eduardo Coutinho, “Cabra marcado para morrer”

Texto: Donizete Oliveira

Foto: Memorial das Ligas e Lutas Camponesas

1, 2, 3... três tiros ecoaram nas margens da BR-230, que liga João Pessoa a Sapé, município de 52 mil habitantes, a 57 quilômetros da capital paraibana. Era 2 de abril de 1962. A vítima assassinada a tiros de fuzil pelas costas era o agricultor João Pedro Teixeira. Marido de Elizabeth Altino Teixeira, ele travara uma luta ferrenha com latifundiários da região. Rechaçava os maus tratos a trabalhadores rurais e exigia a reforma agrária. Reivindicação antiga que põe o Brasil entre os raros países do mundo que não a fizeram.

João Pedro sabia que podia morrer, mas foi às últimas consequências contra os algozes daqueles que lavravam a terra e dela tiravam o sustento. A altiva luta dele se transformou em famoso documentário: “Cabra marcado para morrer”. Obra-prima que Eduardo Coutinho começou a produzir após a morte do camponês. O golpe civil/militar de 1964 a interrompeu. Após a anistia, ele voltou a filmá-la e a lançou em 1984. Uma reflexão que escancara as mazelas de um Brasil desconhecido, mas presente no nosso cotidiano.

De família de posses, o pai de Elizabeth não quis que a filha se casasse com João Pedro. Até dinheiro lhe ofereceu para que o deixasse, mas ela resistiu. Com a morte do marido, assumiu a luta pela reforma agrária. Um embate sem trégua. Tentaram silenciá-la. Num ataque a tiros, à casa dela, a prenderam. Paulo Pedro, seu filho, de 11 anos, quase morreu com uma bala na cabeça. Marluce, uma de suas filhas, com medo de que matassem a mãe e o resto da família, bebeu veneno e morreu. Após constatar a injusta prisão, o delegado a soltou.

Mas a luta de Elizabeth não parou. A exibição de “Cabra marcado para morrer” lhe deu visibilidade. Ela transformou sua luta em embate permanente pela reforma agrária. Proferiu palestras e participou de eventos pelo Brasil. Em Cuba, o então comandante Fidel Castro a recebeu. Para escapar da perseguição lhe ofereceu asilo político. Mas ela preferiu ficar e encarar a cruel realidade. Na ditadura civil/militar, por 16 anos, foi exilada no seu próprio país. Mudou o nome e viveu no interior do Rio Grande do Norte. Sobrevivia lavando roupa.  

Resistência e coragem não lhe faltam. Em 13 de fevereiro de 2024, ela completou 99 anos. Mora no bairro Cruz das Almas, em João Pessoa, com alguns dos seus 11 filhos e netos. Sem ceder um milímetro naquilo que a motiva: “um Brasil com terra para quem precisa”. Com ajuda da presidente do Memorial das Ligas e Lutas Camponesas, Alane Lima, em Vila de Antas, Sapé, Elizabeth disse que a luta continua, sem tréguas. “A reforma agrária é uma causa nobre e necessária, portanto, vou até o fim nesse ideal, a exemplo do meu marido”, afirma. Uma mulher marcada para resistir...


Elizabeth resiste aos 99 anos