segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025

O PÃO NOSSO DE CADA DIA...

 

Padeiro que bateu e assou massa por mais de 50 anos lembra do tempo em que as carroças faziam filas à frente das padarias para levar pão e leite até a casa dos moradores, que pagavam ao dono do comércio no fim do mês

Texto e foto Donizete Oliveira

Acomodado numa cadeira, ele não arreda os olhos do jogo de sinuca. A cada tacada, uma bolinha vai; outra vem. Até a última cair. O vencedor grita e joga o taco sobre a mesa. Pausa. Uma cerveja. Conversa fora. Mais uma partida. Aquele senhor grisalho permanece vidrado nas tacadas. Quem ganha, quem perde? Não importa. Vale o passatempo. Dos jogadores e dele, que anos a fios trocou o dia pela noite para ganhar o pão e garantir o pão alheio. Aposentado, assiste aos amigos, em intermináveis disputas de sinuca. Num bar na rua Osvaldo Cruz, em Apucarana.

A maioria que ali frequenta o conhece. É Antenor Rafael. “Debulhar o trigo/Recolher cada bago do trigo/Forjar no trigo o milagre do pão”. Os versos de Milton Nascimento e Chico Buarque, em “Cio da Terra”, lhes parecem endereçados. Embora ele utilizasse o produto final do trigo, a farinha, produziu pão por mais de 50 anos. Noites adentro a bater a massa, que crescia e ia ao forno. Do lado de fora, as carroças adaptadas formavam uma fila a esperar os pães, que entregavam com o leite nas casas da cidade.

Nascido em Carlópolis (PR), em 7 de agosto de 1947, município na divisa com São Paulo, onde no passado, paulistas vasculhavam as montanhas atrás de ouro. Mas a família de Antenor não achou nenhuma pedra preciosa por lá e resolveu tentar a vida em outras bandas. O pai dele, Benedito, cultivou fazendas de café em Londrina. O filho queria aprender uma profissão, mas não sabia o que seguir. Em Borrazópolis, trabalhou na roça. Mudou-se para Jandaia do Sul, ingressou na Sociedade Algodoeira do Nordeste Brasileiro, a famosa Sanbra, que fabricava óleo de algodão.

De lá veio para Apucarana. Com um amigo, Nestor, aprendeu os segredos de bater a massa, modelar os pães e pôr para assar. Com uma pá enorme os colocava no fundo do forno a lenha e prosseguia até completar a fornada. Madeira não faltava. Gurucaia, eucalipto, peroba, entre tantas outras. Ainda havia parte daquele sertão que cobrira o norte do Paraná. Nos pátios das padarias, a pilha de lenha tinha mais de dez metros de altura. Os pedaços eram consumidos na fornada de ao menos 15 mil pães por noite. “Uma rotina gostosa, que a gente fazia questão de cumprir porque o pão tinha de estar na mesa do café de milhares de pessoas”, conta Antenor, ao bebericar uma latinha de cerveja, na mesa do bar.

A fila das chamadas “carroças de padeiro” dobrava a esquina. Cada uma no seu roteiro, abasteciam a casa dos moradores, que pagavam o dono da padaria no fim do mês. Mas as cidades vizinhas, que não faziam pães, esperavam a entrega de Apucarana. Um tal Mané Boca Quente a fazia. De madrugada, ele lotava uma Kombi e saía rumo a Califórnia. Abastecia padarias, vendas e bares até Ortigueira. A Kombi do Mané era conhecida pelo ronco do motor que rompia o silêncio da madrugada. Com sol ou chuva, lá ia carregada de pães.

Após queimar muita lenha, os fornos se tornaram elétricos. Mas os donos de padaria se frustraram com o custo da energia. A indústria os substituiu pelos movidos a gás, que proporcionam rapidez e economia. O preparo da massa com fermento, o crescimento na estufa. Os tabuleiros ficavam abarrotados. Mais uma noite virava na rotina do antigo padeiro, que ensinou muita gente. É o caso de Moacir Paes, 51, que lhe agradece. “Além de me ensinar a trabalhar, me fez gente, sem ele eu não seria nada”, diz o padeiro, ao beber uma cerveja com o amigo que lhe ensinou a profissão.

Casado com Zuleica, pai de Marcelo, Juliano, que morreu após uma queda ao limpar um telhado, e Adriano. Tem dois netos e um bisneto. Ao avaliar os anos em que pôs a mão na massa, se diz realizado. “Fiz meu melhor numa época em que tudo era difícil”, afirma. Ele se refere à produção de pão hoje, cuja massa vem congelada, e as medidas prontas. Naquele tempo, na produção do pão sovado, por exemplo, como o nome diz, a massa tinha que ser batida até ficar densa.

 Pronto, ficava com uma textura característica. Coisa do passado. Não se faz mais pão sovado. As padarias também mudaram. Até meado dos anos 70, eram sinônimos de pão e leite. As mais tradicionais nem balcão tinham. Os clientes compravam o pão e o leite e levavam para casa. Hoje, viraram um comércio como qualquer outro e vendem diversos produtos. “Antigamente, havia o padeiro, o farmacêutico, o médico, o vendeiro, o alfaiate, as pessoas se identificavam com os profissionais, hoje, não, tudo é transitório”, reflete Antenor. 

O padeiro aposentado Antenor recorda os tempos em que fazia pães em Apucarana nos anos 70 e 80

                                                                  
Quem consome pães hoje, muitas vezes não sabe como eram assados antigamente



                                                                                     
Um padeiro antigo em ação no forno a lenha, nos tempos em que o processo era manual