quarta-feira, 22 de março de 2017

A CIDADE DOS PICA-PAUS


Fotógrafo registra variedades da espécie que se prolifera em Maringá enfeitando as árvores de cores e barulho peculiar produzido pelas potentes bicadas nos galhos secos

Texto Airton Donizete
Fotos Wellington Carvalho

Ainda não eram 7 horas. Eu caminhava perto do Parque do Ingá, centro de Maringá. As batidas eram cada vez mais fortes: pá, pá, pá... Imaginei que alguém batesse o martelo numa tábua ou coisa parecida. Olhava, olhava e não via de onde vinha aquele som. Andei mais um pouco. Parei. Aí identifiquei: o som vinha de um poste. Era um pica-pau bicando a estrutura de ferro que protegia uma lâmpada.
Como este é possível ver muitos outros. Há muitas variedades de pica-paus em Maringá. Alguns emitem um som peculiar e mergulham entre as galhadas. Voam de um galho ao outro. Bicam, bicam. Se encontrarem comida permanecem ali por um tempo. Do contrário, seguem à procura de galhos e troncos secos de onde podem tirar sua refeição.
Leio no site Wiki Aves (site especializado em aves) que os pica-paus são de fácil identificação na natureza. Hábeis cavadores de buracos em troncos estão sempre a fazer barulho, facilitando a localização.   Eles têm a língua vermiforme, em forma de verme, e muito longa. Um potente instrumento para coletar insetos que ficam nos furos da madeira.
É uma ave de bico duro. No Wiki Aves também leio que os pica-paus suportam um impacto de cerca de 1200 G (força de aceleração da gravidade) ao bater seu bico numa árvore. A mesma ação entre 80 e 100 G pode provocar concussão cerebral num ser humano.
Os pica-paus não sentem nem mesmo dor de cabeça! Sua cabeça se desenvolveu com quatro estruturas diferentes, que lhe possibilitam bicar uma árvore até 22 vezes por segundo sem nenhuma lesão no cérebro.
Eles têm um bico forte, mas flexível; um hioide, uma estrutura de osso e tecido elástico que envolve o crânio; uma área de osso esponjoso no crânio e um pequeno espaço entre o crânio e o cérebro para o líquido cerebrospinal. Característica que os tornam especiais, com bico bastante resistente.
Especialistas dizem que no Brasil há em torno de 47 variedades de pica-paus. Em Maringá, é possível ver alguns. O fotógrafo Wellington César de Carvalho, 46, os fotografou em árvores da cidade.  São dele as fotos que ilustram este texto. Portanto, se você ouvir nas ruas de Maringá: pá, pá, pá... sem pausa por alguns instantes. Pode ser um pica-pau. De verdade. Não aquele do desenho, que faz sucesso na televisão, criado por Walt Lantz, em 1940.

PICA-PAUS FOTOGRAFADOS EM MARINGÁ

Pica-pau-cabeça-amarela
Pica-pau-do-topete-vermelho
Pica-pau-branco

Pica-pau-anão-barrado







segunda-feira, 13 de março de 2017

O "VAMPIRO" NA JANELA, EU VI...



Após três e mais três batidas na janela descorada e corroída pelo tempo, de um antigo casarão de alvenaria, no Alto da Rua XV, em Curitiba,  um senhor de cabelos esbranquiçados e faces rubescidas abriu-a...

(Texto e foto: Airton Donizete)


“Em notícias policiais, frases no ar, bulas de remédio, pequenos anúncios, bilhetes de suicidas, o meu e o teu fantasma no sótão, confidências de amigos, leitura dos clássicos etc. O que não me contam, eu escuto atrás das portas. O que não sei, eu adivinho - e, com sorte, você advinha sempre o que, cedo ou tarde, acaba acontecendo”.
Resposta do escritor Dalton Trevisan ao jornalista Araken Távora. Numa de suas raras entrevistas (talvez, única) publicada em 1968, na Revista Panorama. O jornalista lhe perguntara onde buscava o tema para seus contos? A entrevista está transcrita no excelente site de literatura “Tiro de Letra”.
Resolvi seguir o conselho do próprio “Vampiro”. Assim o chamam. Estava eu em Curitiba num dia ensolarado. Oposto aos hábitos de um vampiro. Uma quinta-feira de julho de 2016. Inverno seco. Manhã fria; tarde de mormaço, mas logo o frio voltaria. Encontrei meu amigo Orlando Lisboa de Almeida.
Que me levaria até a casa do “Vampiro”, no bairro Alto da Rua XV. Cortamos o centro a pé. Subimos pela rua Amintas de Barros. Na esquina com a rua Ubaldino do Amaral, número 487, avistamos o antigo casarão de alvenaria. Com sótão. Características dos descendentes de europeus que povoaram aquele bairro.
         Era pouco mais de 17 horas. Esperei a pausa do semáforo. Fotografei. O jornalista nunca deve ceder às artimanhas do entrevistado. Tinha certeza de que o “Vampiro” não me receberia. Mas levei um exemplar de “O vampiro de Curitiba” na esperança de ele autografar. Aproximei-me de um dos janelões, que dão para rua. Bati uma, duas, três vezes. Dei uma pausa. Mais três batidas...
         De repente, a janela se abriu. Surge um senhor de cabelos curtos, lisos e esbranquiçados. Óculos discretos. Faces ruborescidas. Dizem que é tímido. Imagino que a característica da pele era por causa do frio mesmo. Disse que era de Maringá e viera a Curitiba trazer um livro para ele autografar. Desculpou-se, dizendo que não estava mais autografando. Insisti. “Poxa vida, vim de tão longe!” “Lamento, mas parei com os autógrafos”, repetiu.
         Por alguns segundos, pairou um silêncio entre nós. Meio sem saber o que diria, tasquei: “Então, me dê um livro seu. Quero uma lembrança, pelo menos”. “Pois, não!” Abaixou-se e pegou dois exemplares. “Você pediu um e eu te dou dois”. Ambos da editora L&M Pocket: “A gorda do Tiki Bar” e “Frufru Rataplã Dolores”. Obrigado! Agradeci. Ele retribuiu e fechou a descorada e corroída janela. Ouvi um barulho de cachorro correndo pela casa.
         Escondi a câmera debaixo da camisa.  Arredio a fotos, se a visse talvez fechasse a janela. Ao abri-la me varreu da cabeça aos pés, com um olhar desconfiado. Suponho que precavido a celulares, câmeras ou qualquer apetrecho que pudesse filmá-lo ou fotografá-lo.
         Não saí de lá realizado porque queria um autógrafo. Mas me dei por satisfeito. Ao menos o vi. Agradeço ao Orlando. Que me levou ao Alto da Rua XV e possibilitou o inusitado encontro.  
         O conselho valeu: “O que não me contam, eu escuto atrás das portas”. O diálogo com o “Vampiro”, na janela, demorou exatos 52 segundos. Cronometrados. O Orlando por testemunha. Assim não preciso dizer “Somente Deus por testemunha”. Um dos filmes sobre a trágica história do Titanic. De naufrágios basta o lendário navio. Minhas entrevistas, não. 

FOTOS - SEQUÊNCIA

O antigo casarão de Dalton Trevisan, no Alto da Rua XV, em Curitiba

Dalton Trevisan retratado pelo artista Carlos Dala Stella 

O “Vampiro” em foto de Júlio Covello 






Quem é Dalton Trevisan

Dalton Jérson Trevisan nasceu em Curitiba, em 14 de junho de 1925. Formou-se em Direito pela Faculdade de Direito do Paraná. Exerceu a advocacia durante sete anos, mas abandonou a atividade para trabalhar na fábrica de cerâmicas da família. Estreou na literatura com a novela “Sonata ao Luar” (1945). Em 1946, liderou em Curitiba o grupo literário que publicava a revista literária “Joaquim”, tornando-se porta voz de vários escritores. Publicou na revista seu segundo livro "Sete Anos de Pastor" (1946).
Ao longo de alguns anos produziu textos sem publicá-los. Em 1950 passou seis meses na Europa. A partir de 1954, publicava seus contos em forma de folhetos, à moda da literatura de cordel, onde registrava o cotidiano da metrópole curitibana. Publicou "Guia Histórico de Curitiba" e "Crônicas da Província de Curitiba".
Trevisan ganhou repercussão nacional a partir de 1959, com a publicação de "Novelas Nada Exemplares" (1959), que reunia quase duas décadas de produção literária. Recebeu pela obra, o Prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro. Em seguida publicou “Cemitério dos Elefantes” (1964), “O Vampiro de Curitiba” (1965), “A Morte na Praça” (1965) e “Desastres do Amor” (1968). Nesse mesmo ano recebeu o maior prêmio literário do Brasil, no I Concurso Nacional de Contos, promovido pelo Estado do Paraná.
Dedicado ao conto, só teve um romance publicado "A Polaquinha" (1985). Em 1996 recebeu o Prêmio Ministério da Cultura de Literatura, pelo conjunto de sua obra. Em 2003 dividiu com Bernardo de Carvalho o I Prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira, com o livro "Pico na Veia".
Ele venceu a 24ª edição do Prêmio Camões de 2012. Foi eleito por unanimidade pelo júri, pelo conjunto da obra. O Prêmio Camões é uma das maiores honrarias para autores da língua portuguesa. É uma parceria entre os governos do Brasil e de Portugal, e a cada ano acontece em um dos dois países.
Publicou também "A Guerra Conjugal" (1970), "Crimes da Paixão" (1978), "Ah, É" (1994), "O Maníaco do Olho Verde" (2008), "Violetas e Pavões" (2009), "Desgracida" (2010), "O Anão e a Ninfeta" (2011), entre outras. É considerado o maior contista brasileiro contemporâneo. A publicação do seu livro "O Vampiro de Curitiba" (1965) lhe valeu o apelido, por causa de seu temperamento recluso.

(Transcrito do site Biografia - https://www.ebiografia.com/dalton_trevisan/)

terça-feira, 7 de março de 2017

UMA MULHER APAIXONADA



Aos 89 anos, Lygia Fagundes Telles, a dama da literatura brasileira, em entrevista exclusiva no seu apartamento em São Paulo, fala da amizade com Clarice Lispector, da morte, da paixão pela vida e de literatura

Texto e fotos: Donizete Oliveira

Entrevistar Lygia Fagundes Telles era um sonho. Sempre a admirei. Há dois anos tentava marcar um encontro com a escritora, mas sua assessoria de imprensa repetia que não havia espaço na agenda. Em maio de 2013 quando fui a São Paulo resolvi ligar e, para minha surpresa, a própria Lygia atendeu.
Não falei em entrevista. Não sabia a reação dela. Apenas disse que queria visitá-la. Ela respondeu que poderia me receber no outro dia, por volta das 14 horas. Mais tarde iria a um evento na Academia Paulista de Letras.
Lygia mora na Rua da Consolação, nos Jardins, quase esquina com a famosa Rua Oscar Freire. Lá fui eu. Cheguei à frente do prédio. Anuncie minha presença. A empregada dela atendeu. “Pode subir, a escritora tá esperando”, disse.
Comprei numa banquinha na própria Consolação um buquê de lírios amarelos e dei para ela. Recebeu, emocionada, e entregou a empregada Lídia, que as colocou num vaso com água.
A prosa com Lygia virou uma entrevista regada a vinho do porto. Disse que havia dado uma pausa no pouco álcool que consumia, mas me serviu um copo. Servi-me mais duas vezes. Ótimo vinho. Logo percebi que estava diante de um daqueles personagens infinitos.
Impossível explorá-la numa hora de prosa. Lygia fala da infância, da família, da faculdade, dos amigos, dos livros e de muitas outras coisas. Não responde minhas perguntas. Emenda um assunto ao outro.
Senso de humor não lhe falta. Com mímicas, imita o pai dela fumando charuto. Também a língua presa de Clarice Lispector. Sua grande amiga, com quem viajou à Colômbia para um evento literário. Lygia me dá um presente. E que presente! Uma foto dela com Clarice na Colômbia, na década de 1970.
Depois de muita prosa, ela acende um cigarro. “Vocês me dão licença, que vou fumar”, diz. Nascida em São Paulo em 19 de abril de 1923, ela continua bonita e apaixonada. Uma mulher apaixonada. Ou melhor, vocacionada. Paixão para ela é fazer o que gosta. É vocação.
Aspira a fumaça, solta. Entendi que a prosa chegara ao fim. Ela autografa um exemplar do livro “As Meninas” e me entrega. Vai à estante pega outro de contos, também autografa. Para eu entregar ao cônego Benedito Vieira Telles, um parente distante, de Maringá. A empregada pede para eu apressar. Lygia tem de almoçar e se arrumar para ir à Academia Paulista de Letras, da qual é membro. Também pertence à Academia Brasileira de Letras. 
Me despeço. Ela me acompanha até a porta. Diz ser um hábito que aprendeu com os egípcios. A entrevista com Lygia, resultado da prosa daquele dia, está a seguir.
Como a senhora começou a escrever?
Sou formada em direito e educação física. Era corredora de 400 metros. Há cinco anos, quebrei o fêmur da perna direita. Fui operada. Não tenho dor, mas não dá mais pra correr 400 metros (risadas).
Meu pai era promotor público. Era removido de um lugar pra outro. Conheço uma cidade chamada Apiaí. Ninguém sabe dessa cidade, a origem seria “apeia aí”. Passei minha infância no interior paulista, principalmente em Sertãozinho. Conheço Descalvado, Itatinga, Assis, entre outras. Eu contava história pras meninas e meninos do meu bairro. Contava pequenas histórias, e eles gostavam.
Conhece Maringá?
 Maringá, não. Só a música. Na minha juventude, eu cantava: “Maringá, Maringá/Depois que tu partiste/Tudo aqui ficou triste/Que garrei a imaginar/Pra haver felicidade/É preciso que a saudade/Vá morar em outro lugar”...
Que alegria! O Brasil apesar de tudo... É preciso ter esperança! O que é esperança? É paixão. O que é paixão? É vocação. É preciso amar a vida. Com paixão, com força. Acreditar. Já que é preciso aceitá-la, que seja então corajosamente. Fazer o que amamos. Isso se chama vocação. Você cumprindo sua vocação, você está feliz.
De onde vem inspiração para escrever?
Eu contava histórias quando eu não sabia escrever. A mamãe tinha... hoje se fala babá, mas eu gosto da palavra antiquada pajem. Minhas pajens. Na antiguidade, elas seguiam as princesas tocando bandolim. Eu contava histórias pra elas quando não sabia escrever.
Comecei a registrar as histórias que eu contava pra não perdê-las. Mas todos escritos da minha juventude, eu abomino. Eu era muito jovem e não sabia escrever, escrevia porque tinha vontade e tal. Então cortei toda essa parte. Eu considero minha obra a partir do romance “Ciranda de Pedra”.
Os críticos também passaram a considerar minha obra a partir daí. Incluindo meu grande amigo, Carlos Drummond de Andrade, que me dizia: “Seus livros, os primeiros, vamos esquecer. A partir de ‘Ciranda de Pedra’, sua obra se firmou”.
Que autores a senhora lia?
Assim que minha família se mudou pra São Paulo, eu comecei a ler. Lia desbragadamente. Lia tudo. Eu comecei a ler os primeiros livros... Edgar Allan Poe, Victor Hugo. Lia aquele escritor francês que morreu jovem (não se lembra do nome).  
E a literatura atual?
A qualidade é ótima, mas você vê nos jornais, nas revistas, na lista dos mais vendidos quase não aparece brasileiro. Machado de Assis, Guimarães Rosa, não estão lá. Mas há escritores estrangeiros de má qualidade, inferiores. Onde está Machado? Onde está Guimarães Rosa?
Por quê?
Porque há uma... (longa pausa). Olhe, é um mistério. Um mistério! Quem sabe vocês da imprensa conseguem esclarecer esse mistério? Por que o brasileiro não gosta do Brasil? Por que não gosta da literatura brasileira? Eu pergunto. Tá compreendendo?
Inclusive escritores estrangeiros que eu nunca leria, de qualidade inferior, são os mais lidos. E onde estão os brasileiros? Então eu tenho uma frase, que considero importante. Há no Brasil três espécies em processo de extinção: o índio, o escritor e a árvore.
O índio... Está a situação que vemos aí. Os escritores... Acabei de falar. Por que os escritores brasileiros não são lidos no Brasil? Grandes escritores, onde estão os poetas, os românticos?
Na faculdade de direito onde me formei, do Largo São Francisco, tem gravado na porta três nomes: Alvares de Azevedo, Fagundes Varela e Castro Alves. Um paulista, um fluminense e um baiano. Quem lê esses escritores hoje? Você tá vendo a tristeza... Que acontece com o Brasil, que não ama sua literatura?
E as árvores?
Aqui em SP, as árvores não crescem mais. Elas não conseguem aprofundar sua raiz. O concreto não deixa.
Em Maringá, ainda há árvores nas ruas?
Muito bem. Parabéns Maringá! “Maringá, Maringá, depois que tu partiste” (canta)... Mas aqui em São Paulo tem essa camada de concreto que não deixa as árvores crescer.
Coitadas, elas querem aprofundar as raízes, mas não podem. Então, elas estão caindo. Quando tem uma tempestade, um vento forte, elas caem. Então, vou repetir: o índio, o escritor e as árvores são espécies em processo de extinção.
A senhora prepara um novo livro?
Sou da Academia Brasileira de Letras. Gosto muito da academia. Meus amigos estão lá. Infelizmente, não posso viajar ao Rio de Janeiro. O avião é muito complicado. As poltronas são muito próximas uma das outras. Não tem espaço pra minha perna. Minha pobre perna fraturada. Meu médico diz: “Dona Lygia, não fale que a senhora quebrou a perna. Diga que tem o fêmur fraturado. É mais elegante”.
Quando ando de carro, daqui a pouco vou à Academia Paulista de Letras, sou obrigada a sentar na frente com o chofer porque a cadeira é dura. Preciso de cadeira dura por causa da minha perna fraturada.
Um dia o chofer perguntou: a senhora tá com um problema na perna por isso tá aqui na frente? Eu disse que havia caído e fraturado o fêmur, repetindo as palavras chique e elegante do médico. Ele perguntou pra que time eu torcia, eu disse pro São Paulo.
Olhe, disse ele, não diga pra ninguém porque eu sou do Corinthians, e eles são bravos. Se a senhora disser, eles podem quebrar sua outra perna. Melhor não arriscar. Diga sou de um clube aí (risadas).
Ouvi dizer que toda sua obra será relançada?
Gosto muito da minha editora, a Companhia das Letras. Ela tá relançando todos meus livros. Tenho livros relançados pela Editora Ática, que acho importante. Os adolescentes têm que ler a literatura brasileira. Eu era muito amiga de Clarice Lispector. Viajamos juntas. Até vou mostrar uns retratos (pega um álbum com antigas fotografias).
A Clarice era muito engraçada. Viajamos a uma universidade da Colômbia no mesmo avião. Até aquele dia não tinha relação com ela. Não gosto de avião. Hoje mesmo vi um artigo que dizia: perca seu medo de avião. É fácil, digo eu, só não subir nele (risadas).
Então, estava eu e Clarice. E vai o avião no meio das nuvens, balançando. Disse esse troço vai cair e eu ainda não acabei de escrever o que eu queria (risadas). Clarice que estava ao lado, respondeu: “Não fique com medo Lygia, minha cartomante disse que vou morrer na cama, então se estou aqui este avião na vai cair”.
Aí eu disse bom então não vai acontecer nada e não aconteceu. Mas a Clarice era curiosa. Ela tinha a língua presa. Quando a gente ficava em hotel, ela dizia: vamos sair pra comprar esmeraldas (imita a fala da amiga). Nasceu com a língua presa. Podia fazer uma cirurgia, mas naquela época era muito dolorida.
Ela dizia pra mim, você ri muito. Tem que ficar séria nos retratos porque senão os homens não levam a gente a sério. Repara que eu não rio em nenhum retrato (imita a língua presa da Clarice e dá risadas).
Olhe aqui! Mostras as fotos antigas (entre elas, estão Vargas Llosa mocinho e Clarice Lispector). Ela era ótima, a Clarice. Eu gostava muito dela. Grande amiga. Quando morreu meu segundo marido, Paulo Emílio, ela me mandou um bilhete me consolando, mas no mesmo ano ela morreu.
O envelhecimento e a morte são temas recorrentes na literatura, como a senhora os encara?
Engraçado. Eu nunca pensei em fazer plástica. Isso não me atormenta. Minha vó era italiana, minha árvore genealógica é portuguesa misturada com índio, bem lá embaixo.
Nunca me ocorreu isso. Vou tocando. Contanto que eu conserve uma cara que não amedronte as criancinhas (risadas). Hoje por exemplo tenho uma reunião na Academia Paulista de Letras (lembra-se de Rui Mesquita, um dos donos do Jornal O Estado de S. Paulo, que havia morrido no dia anterior a esta entrevista).
Quando eu era jovenzinha, eu estava na faculdade de direito, o Alfredo Mesquita, que era tio do Rui, me convidou para fazer teatro amador. Eu fui, mas mamãe ficou desesperada. Disse minha filha você já entrou numa escola só de homens (Faculdade do Largo São Francisco, na época), agora vai fazer teatro. Aí que não vai casar mesmo. Ao contrário, casei duas vezes (risadas). Na faculdade, éramos apenas cinco moças, todas virgens, inclusive eu. Mamãe era vigilante, ficava de olho. Casei virgem.
Ela tinha pavor. Dizia, minha filha, a sociedade não gosta de mulheres que saem de casa e vão fazer coisas. No entanto, meu professor de direito, o Miguel Reale, dizia que a mais importante revolução do século 20 foi a revolução da mulher. Acho isso importantíssimo. Quando entrei na faculdade, um rapaz perguntou: o que vocês vieram fazer aqui, casar? Disse também e me casei com um dos meus professores, meu primeiro marido, o Goffredo.
E a morte?
Quando eu era criança, eu contava história, como já disse. Sertãozinho está importantíssima. O Cristo Redentor de lá é maior do que o do Rio de Janeiro. Guardo muitas lembranças de lá. Mas o que mesmo você me perguntou?
Pois é, a primeira vez que entendi a morte foi quando morreu meu cachorro. Eu o adorava. Isso foi lá no interior. Quando enterraram meu cachorro, espantei. Disse: nunca vou ver mais meu cachorro? Meu pai disse que não. Então, perguntei: e a gente? Meu pai fumando um charuto (imita-o dando baforadas) respondeu: quando a gente morre, quem acredita em Deus, vai pro céu e espera uma reencarnação. Quis saber o que era aquilo.
Ele respondeu: difícil explicar pra você, filha, mas vou tentar. A pessoa quando morre pertence a outra vida. E depois volta. Vê se você entende, um filósofo importante dizia: eu já fui uma donzela, um pássaro azul da floresta e um peixe do mar.
Disse que bonito papai. Então é isso, respondeu ele. Reencarnação você volta em outra forma. Mas a essência é a mesma. A gente vai voltar? Eu perguntava. E ele respondia baforando seu charuto. Quando eu morrer, quero voltar nessa forma em que estou. Ou então, não. Será uma surpresa. Deus é quem sabe (risadas). 
  

Dois casamentos e muitos prêmios

Lygia Fagundes Telles nasceu em São Paulo, mas se criou no interior do Estado. Filha do promotor público Durval de Azevedo Fagundes e da pianista Maria do Rosário de Azevedo (Zazita). Cursou Direito na faculdade do Largo do São Francisco, da Universidade de São Paulo e Educação Física na mesma instituição.
Casou-se com o jurista e professor Goffredo da Silva Telles Júnior, com quem teve seu único filho, o cineasta Gofredo Telles Neto. O segundo casamento foi com o cineasta Paulo Emílio Salles Gomes. Ambos morreram.
Gofredo Neto, que morreu em 2006, lhe deu duas netas: Lúcia Carolina Aidar da Silva Telles e Margarida Goreki da Silva Telles. Ela vive com a empregada Lídia. Nos fins de semana, as netas lhe fazem companhia.
Membro da Academia Brasileira de Letras, Lygia foi publicada na França, Estados Unidos, Alemanha, Holanda, Portugal, Suécia, República Checa, Espanha, entre outros países, com obras adaptadas para o cinema, teatro e TV.
Ganhou os prêmios: Instituto Nacional do Livro (1958); Guimarães Rosa (1972); Coelho Neto, da Academia Brasileira de Letras (1973); Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro (1980); Pedro Nava, de Melhor Livro do Ano (1989); Melhor livro de contos, Biblioteca Nacional; Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro; Aplub de Literatura; Jabuti (Ficção, 2001) e Camões, em 2005.

Obras

(Contos)
Porão e sobrado, 1938
Praia viva, 1944
O cacto vermelho, 1949
Histórias do desencontro, 1958
Histórias escolhidas, 1964
O jardim selvagem, 1965
Antes do baile verde, 1970
Seminário dos ratos, 1977
Filhos pródigos, 1978 (reeditado como A estrutura da bolha de sabão, 1991)
A disciplina do amor, 1980
Mistérios, 1981
A noite escura e mais eu, 1995
Venha ver o por do sol
Oito contos de amor
Invenção e Memória, 2000 (Prêmio Jabuti)
Durante aquele estranho chá: perdidos e achados, 2002
Meus contos preferidos, 2004
Histórias de mistério, 2004
Meus contos esquecidos, 2005
(Romances)
Ciranda de pedra, 1954
Verão no aquário, 1963
As meninas, 1973
As horas nuas, 1989




Lygia diz que é preciso amar a vida com paixão, com força, acreditar nela

Lygia e Clarice Lispector na Colômbia, na década de 70, com um amigo


Simples e carismática, em entrevista no seu apartamento, nos Jardins, em SP

domingo, 5 de março de 2017

O EXTERMINADOR DE FUNGOS E ÁCAROS


Com arte, habilidade e paciência, restaurador de livros antigos transforma páginas e capas amareladas e danificadas pelo tempo em exemplares com aparência de novos
Texto e foto Airton Donizete

Um livro antigo, com páginas amareladas e esfarelando pela ação do tempo. Para recuperá-lo, o primeiro passo é exterminar os fungos e ácaros que o devoram, se alimentando de cola e papel velhos. Mas não é apenas destruí-los. A recuperação das folhas e capas exige uma dose de arte, habilidade e paciência.
Para algumas pessoas, livros antigos são mais que folhas de papel dobradas e encadernadas. Eles têm valor sentimental. As memórias que os ligam aos donos os fazem permanecer a vida toda numa estante. Muitos são frágeis, e o manuseio constante os danifica. Aí entra o trabalho do restaurador. Em Maringá, é possível encontrá-lo na Rua Bragança, 219 (Zona 7), numa casinha de madeira.
Cheguei lá pouco antes das 13 horas. Estava fechado para almoço. Mas logo Edilson Francisco de Oliveira, 53, conhecido por Bêga, surgiu. Casado com Nilza Oliveira, o casal tem dois filhos. Natural de Nova Esperança, ele está em Maringá desde os seis anos. O pai dele era vendedor da Loja Riachuelo e foi transferido para a Cidade Canção. Bêga estudou geografia na Universidade Estadual de Maringá (UEM), mas não concluiu o curso. Após ser engraxate, office-boy e passar por outros empregos se tornou encadernador.
De tanto mexer com livros antigos, começou a recuperá-los. Sozinho descobriu algumas técnicas, até que em 2000 fez um curso de restauração de livros na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Em duas semanas aprendeu o segredo de transformar folhas de papel amareladas e danificadas em exemplares com aparência de novos.
Pedra, madeira, placas de barro, papiro, pergaminho, cânhamo, capim, palha e até trapos velhos foram usados para a escrita durante séculos. Dizem que o papel foi inventado na China no ano 105 depois de Cristo por um sujeito chamado Cai Lun. De lá para cá, as publicações aumentaram e, com elas, os desgastes naturais do frágil material de celulose.  
Mas o mercado de restauro de livros não evoluiu tanto. Bêga não vive apenas dele. É uma espécie de apêndice de seu negócio, que inclui, entre outros, encadernação e produção de capas para trabalhos científicos.  Mas há clientes fixos que ao comprar um livro os leva para reforçar as páginas. Alguns chegam com raridade. Por exemplo, uma Bíblia, de 1903.
Uma mulher trouxe um livro de receitas da personagem dona Benta, de 1948. Para restaurar e presentear a avó dela que o guardara. Mas não é só livro. Outra juntou os trabalhos que o filho fizera nos primeiros anos da escola. Encomendou uma bela encadernação para homenageá-lo no dia do casamento dele.

O restaurador diz que cada livro é um caso. Depende da acidez e da química do material. Os antigos desgastados e amarelados são congelados por 72 horas para matar fungos e ácaros. Após a secagem, é feita a recuperação, que pode incluir aplicação do papel japonês, cuja consistência permite reparar capas e folhas.
- Vai do que pede o cliente, do valor sentimental que ele tem pelo livro e da raridade do exemplar. Quanto mais sofisticado o trabalho maiores a intervenção do restaurador e o custo da mão de obra - afirma Bêga.
De vez em quanto aparecem gibis e revistas antigas. Há casos que ele não esquece. Por exemplo, um cliente que trouxe um livro antigo do Nazismo. Apaixonado por guerras, ele guardava o exemplar por causa das máquinas de guerra alemãs. A mãe dele achava que era pela ideologia do partido de Hitler. Com uma tesoura, ela o picotou todo. O filho inconformado procurou Bêga.
- Aquele livro foi um dos mais complicados que restaurei – conta. – Recuperei quase todo o texto que havia sido danificado. Mas consegui, e o cliente ficou satisfeito.
É um trabalho minucioso, que exige paciência, habilidade e conhecimento. Antes de ele fazer o curso na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, imaginava que dar nova aparência a um exemplar bastava colocar uma capa dura. Mas, não. Restauração envolve, sobretudo, a manutenção original do livro.
- O bom restaurador faz isso. Hoje, com a internet, facilita a busca de uma nova capa do material. Assim, você reconstrói o livro, como recuperar a lataria de um carro, mantendo a feitura original – acrescenta.
Quer aprender? Ele ensina. Bêga ministrou cursos de restauração de livros em Maringá e em outras cidades do Paraná. Para este ano, ele trabalha num projeto para montar um curso online. Restaurar livros é mais que um trabalho; é a arte de exterminar fungos e ácaros. Mas não basta destruir o inimigo. É preciso reconstruir o campo de guerra, no caso o livro danificado.
(Informações: (44) 3224-1267, com Edilson, o Bêga)

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Edilson de Oliveira, o Bêga, mostra livros antigos, 
cuja restauração ele faz