O dia em que os cafezais ficaram tingidos de negro

Faz 47 anos que a geada negra dizimou os cafezais do Paraná anulando sonhos e 
obrigando muitas famílias a trocarem a roça pelas médias e grandes cidades 
 
Texto: Donizete Oliveira

     Eu tinha hábito de acordar cedo para beber o primeiro leite que saía das tetas das vacas. Meu pai as ordenhava, e eu corria com uma caneca de alumínio. Ele a enchia de leite. Minha mãe misturava café do bule. Dava um gosto especial. Acompanhado de uma batata doce assada era a primeira refeição do dia. Mas naquele dia foi diferente. Meu pai era meeiro e tocava uma propriedade de café na zona rural de Tapejara, no oeste do Paraná. Não lembro quantos, mas eram milhares de pés de café. 
    A noite não foi tranquila. Dormi de calça e com duas blusas. Minha mãe me cobriu com um colchoado de paina. Pesado, me fez sumir no colchão de palha. Manhã de 18 de julho de 1975, dia do meu aniversário. Eu completava nove anos. O frio não me impediu de sair correndo com a caneca de alumínio. A cada assoprada expelia um tucho de fumaça pela boca. Queria o leite quentinho misturado ao café. Encontrei meu pai mudo e estático observando os pés de café, que se avizinhavam da casa. Ele tentava recuperar as forças para ordenhar as vacas. 
    Lágrimas lhe caíam dos olhos. Eu agarrei às pernas dele e desandei a chorar. Esta cena não me sai da cabeça: meu pai contemplando a lavoura negra. O frio que abateu os cafezais do Paraná está na lembrança de quem o vivenciou. Muita gente rumou para as grandes e médias cidades. Alguns permaneceram na zona rural. Derrotados pela monocultura do café adotaram a diversificação agrícola, iniciada nos anos 1980. 
A família Dada é uma das que apostaram em outras culturas. Até hoje vive numa propriedade de dois alqueires na Estrada Vieira, na zona rural de Marialva. “Na época, meu pai tocava apenas café”, conta Eduardo Dada, 46 anos. “Não chegamos a passar fome como alguns produtores, mas sofremos bastante”. Ele e a mãe, Elvira Angelotti Dada, 83 anos, não sabem precisar quantos pés de cafés perderam em 1975. “Aquilo foi um horror”, diz ela. “O sol esquentou, e o cheiro de folha verde queimada tomou conta”.
     Elvira afirma que o prejuízo não foi maior porque eles não tinham meeiro. A própria família cultivava o café. “Mesmo assim, meu pai teve de cortar despesas e reduzir os investimentos na propriedade”, acrescenta Eduardo. O andar vagaroso de Hisato Hashimoto, amparado por uma bengala, não condiz com sua memória. Aos 91 anos, ele se lembra de fatos e pessoas. Nascido em Lins (SP), ele chegou a Marialva em 1947. Vive na mesma propriedade de cinco alqueires, nas margens da estrada que liga a cidade ao distrito de Santa Fé. 
     Em 1975, Hashimoto era empregado, mas perdeu todo o café que cultivava. “Foi uma catástrofe, que nos deixou a zero”, conta. “Nossa sorte que naquele tempo, vivia-se de qualquer jeito, mesmo sem dinheiro, sustentando do que se plantava na roça e dos porcos e galinhas criados no quintal”. Na época, ele colhia uma média de 700 sacas de café plantado com espaçamento, possibilitando o cultivo de milho, arroz e feijão entre os pés. Hashimoto diz que após a geada de 1975, o trabalho maior foi dar destino à lenha seca que restou. “Trabalhamos vários dias para retirar aquele entulho sem serventia”, afirma. Mas ele não desanimou com a geada. Ao contrário de muita gente que partiu para a cidade, permaneceu no sítio, comprando-o, mais tarde, com dinheiro oriundo do trabalho no local, onde mora até hoje. 
    Casado com Tomie Hashimoto, 89 anos, ele tem quatro filhos, dez netos e dois bisnetos. Mora apenas com a mulher no local, que é um verdadeiro museu do café. As casas de madeira. O terreirão, a tulha e o secador. O café, oito mil pés, continua o carro-chefe da propriedade. Ele não soube informar números da safra, alegando que, de ano para ano, varia muito.

Jornais de todo o Brasil estamparam manchetes da tragédia que arrasou com os cafezais do Paraná

Pioneiro viveu auge do café 

Uma das maiores produtoras de café da região foi a Companhia Melhoramentos Norte do Paraná (CMNP). Colonizadora que nasceu da Companhia de Terras Norte do Paraná, fundada por ingleses em 1925. Paralelo à venda de terras, a companhia comprou algumas fazendas para cultivar café.

Quem viveu essa época de fortuna dos grandes cafezais é o pioneiro José Remígio Pereira, que chegou a Maringá em 1953. Ele morreu em 2016, aos 103 anos, mas em 2015, no aniversário de 40 anos da “geada negra”, me recebeu na casa dele, em Maringá, para uma entrevista sobre o assunto. O pioneiro se recordou de quando saía pela região para consertar as máquinas de café da companhia, onde trabalhava.  

Um de seus trajetos era ir até Umuarama (160 quilômetros de Maringá) reparar uma máquina cafeeira. Com chuva, de jipe, demorava sete horas pela estrada de chão batido. O meio mais fácil era o avião teco-teco, que fazia o percurso em 40 minutos. “Lá de cima, a gente via aquela nuvem de poeira que saía do chão, era Maringá”, conta.

Na cidade, tornou-se operador da Cafeeira Santo Antônio, que funcionava na Avenida Mauá, esquina com a Avenida Tuiuti. Em 1965, foi vendida para a Companhia Melhoramentos Norte do Paraná. O gerente da colonizadora, Alfredo Nyfeller, impôs uma condição: só compraria a cafeeira se Remígio, Luiz Roberto Bolotta e Dante Panzeri (também funcionários) viessem juntos.

Proposta aceita, Remígio permaneceu 31 anos na companhia. Ele lembra que em época de safra beneficiava 200 sacas de café por dia. As fazendas da colonizadora tinham 1 milhão de pés de café e produziam em torno de 50 mil sacas por ano.

Luiz Roberto Bolotta, 73, da Cafeeira Santo Antônio foi transferido para o escritório da companhia, na esquina entre a Avenida Duque de Caxias e rua Joubert de Carvalho, onde trabalhou por 35 anos. Na época, havia mais de 50 máquinas de beneficiar café em Maringá. Segundo ele, o café rendia muito dinheiro para a companhia. “No período de venda, minha rotina era contar maços de cédulas no balcão do escritório e levar tudo a pé numa sacola ao banco”, conta. “Naquele tempo não havia assalto”. 

Remígio tem oito filhos de três casamentos. É casado pela terceira vez com Florinda Rossi Pereira, 81. Ele diz que naquele dia 18 de julho de 1975 fez tanto frio que se os pés de café tivessem sido cobertos queimariam do mesmo jeito. “Eu fiz o teste”, conta. “Cobri um pé que tinha no quintal de casa, mas ficou todo preto soltando a casca”. As mangueiras de água amanheceram congeladas. “Algumas chegaram a partir”, acrescenta o pioneiro.

Golpe de misericórdia e até suicídios 

O jornalista Valderi dos Santos diz no seu livro, “O café no norte do Paraná – ascensão e queda”, que a geada de 1975 destruiu mais de 900 milhões de pés de café no Estado. Ele ressalta, no entanto, que o fenômeno foi apenas um golpe de misericórdia. Para o jornalista, o governo federal não dera devida atenção aos cafeicultores, derrubando o preço da cultura, desvalorizando-a no mercado. Eram tempos difíceis. Os agricultores, que não recebiam incentivos do governo, foram mais rápidos à lona com as condições adversas do clima.

O engenheiro agrônomo Marcos Aurélio Volpato, 56 anos, diretor geral de Agricultura, da Prefeitura de Marialva, afirma que o estrago da geada se ampliou porque a maioria dos agricultores dependia apenas do café. Houve casos em que a perda chegou ao extremo. “Alguns que já estavam endividados acabaram cometendo até suicídio”, conta. Na época, ele era estudante do antigo segundo grau.

Volpato ressalta que o pior ocorreu após a destruição dos cafezais. Muita gente se mudou da zona rural para capitais. Irineu Pozzobon, no livro: “A epopeia do café no Paraná”, afirma que entre 500 e 600 mil trabalhadores deixaram o Estado. A maioria foi para São Paulo trabalhar nas indústrias automobilísticas. “Com as crises econômicas muitos perderam o emprego e ficaram na penúria”, declara. “Os que não conseguiram voltar ou não trocaram de ramo sofreram muito”. A soja foi uma das opções para quem quis continuar na agricultura.

A safra paranaense de 1975, colhida antes da geada, rendeu 10,2 milhões de sacas de café, 48% da produção brasileira. O Estado tinha uma produtividade superior à média nacional. No ano seguinte, a produção foi de 3,8 mil sacas. Não houve exportação. A participação paranaense na produção brasileira caiu para 0,1%.

Especialistas avaliaram que o prejuízo chegara a Cr$ 600 milhões (pela cotação da época, o equivalente a US$ 75 milhões) apenas nas lavouras de café. Outras culturas também foram atingidas. Mas o café sustentava a economia do Paraná naquela época. Uma situação que mudaria em seguida, pois os cafeicultores nunca mais se recuperariam daquele evento climático. 

O fotógrafo do café

Em seu Jipe Willys fabricado em Toledo Ohio, nos Estados Unidos, em 1954, ele cortava as estradas barrentas do norte e noroeste do Estado. “Por aqui havia a fama: quando não era pó, era lama, mas a gente encarava e ia em frente”, recordara-se ele, em entrevista, em 2013. Trata-se do fotógrafo Armínio Archimedes Pedro Gonçalves Kaiser, que morreu em 2014, aos 88 anos. Engenheiro agrônomo, ele trabalhou no Instituto Brasileiro do Café entre 1953 e 1989. Nas visitas que fazia pelo Paraná fotografava assuntos relacionados ao café.

O acervo fotográfico de Armínio veio a público com os livros “Ao sabor do Café” e “Ao aroma do café”. A autoria dos trabalhos é do Instituto de Memória e Imagem “Câmara Clara”. Não faltavam cenas para a câmera dele. Em 1967, em Mandaguari, um homem, que vem da zona rural, leva ao cemitério, o corpo do filho num caixãozinho. Dois sujeitos proseiam na beira de uma estrada, que, segundo Armínio, se intitula: “Esperando Godot”. “Mas Godot não veio”, complementa.

As cenas mais tristes que fotografou talvez tenham sido em 1963, ano de um incêndio nas lavouras do Paraná. Após uma grande geada, pastos e cafezais ficaram secos. Trabalhadores atearam fogo para fazer o plantio esperando a chuva, que não veio. O fogo se alastrou e por cerca de quatro meses transformou em cinzas casas, lavouras, pontes e tudo que tinha pela frente.

Mas as geadas de 1962 e 1963 e o incêndio rural que se seguiu no Paraná não impediram a grande produção cafeeira. Veio a erradicação. Em seu livro “A epopeia do café no Paraná”, o engenheiro agrônomo Irineu Pozzobon escreve que a erradicação atingiu 1,34 bilhões de cafeeiros no Brasil; 249 milhões no Paraná.

Com a crise de 1929, o preço do café despencou no exterior. O governo federal resolveu comprar 18 milhões de sacas, ajudando os produtores. Sem ter o que fazer com tanto café, queimou-as. Armínio descrevera: “Quem passasse entre Arapongas e Sabáudia em junho de 1961 assistiria a um espetáculo inédito: um mundaréu de café pegando fogo. Por aqui, ouvi falar em 10 milhões de sacas de café virando cinzas”.

Após as geadas e os incêndios da década de 1960, o frio voltou em 1975. As lavouras que mal tinham saído de uma catástrofe eram dizimadas pela geada negra. 

Em milhares de fotos como esta, que mostra a mulher rural, Armínio Kaiser retratou o auge do café no Paraná

Geada negra mata até a raiz

A geada negra é formada por uma condição atmosférica que congela a parte interna da planta. O poder de destruição é maior. Ocorre quando há atuação de massa de ar polar de forte intensidade, com temperatura baixa e pouca umidade. Em contato com a superfície há o congelamento, provocando enormes danos físicos na planta. “É um fenômeno precedido de muito vento”, diz o professor Hélio Silveira, 44, do departamento de Geografia da Universidade Estadual de Maringá (UEM) e coordenador da Estação Climatológica da mesma instituição.

Quando se forma apenas uma camada de gelo na superfície chama-se de geada branca. Se a seiva da planta congelar é geada negra. Esse último tipo é a mais devastadora para as plantações, mas só ocorrem em cidades bem frias. No Brasil, na maioria das vezes, apenas nas regiões serranas do Sul. Foi o que ocorreu em 18 de julho de 1975. No dia anterior ventou muito. “A geada negra se forma devido ao vento muito gelado, congelando a seiva da planta e ocasionando perda total”, afirma Silveira.

O jornalista Valderi dos Santos, no livro “O Café no norte do Paraná – ascensão e queda” relata que em 1953, a geada provocou queda de 58% nas safras seguintes. Em 1955, 65%; 1962, 49%; 1963, 22%; 1966, 24%; 1969, 87%; 1972, 58% e 1975 prejuízo total. “Na época foi destruído todo o parque cafeeiro do Estado”, escreve ele.

A economia, que dependia muito do café, demorou a se recuperar

Produção ressurge com qualidade 

O Paraná hoje não figura entre os maiores produtores de café do Brasil. Há muitos anos, perdeu o posto para Minas Gerais. Mas o Estado vive um bom momento na produção do grão. As pequenas propriedades lideram a produção. A maioria é cultivada mecanicamente. É o caso de Antônio Geraldo Rosseto, 54, de Mandaguari.

Descendente de italiano, cujos pais, em 1953, atraídos pelo café, vieram do interior de São Paulo para Mandaguari.  A família Rosseto tem um sítio nas margens da rodovia que liga a cidade à Maringá. Antônio, que nasceu na propriedade, cultiva 20 mil mudas. A colheita lhe garante em torno de 500 a 600 sacas em coco. A diferença está na lida do produto. Tudo mecanizado.

A colheita dos grãos é feita com máquinas manuais. Em seguida, são transportados numa caminhonete até o terreiro. Rosseto não quis nem posar para foto com um rastelo na mão. Mas nem sempre foi assim. Segundo ele, antigamente, “era tudo no braço”. Quando ameaçava chuva durante a colheita era um problema. “A gente ia pegar um animal para pôr no carrinho era um Deus nos acuda”, afirma. “Parece que o bicho adivinhava e danava a correr”.

Apesar dos contratempos na economia que atrapalham a agricultura, ele e a família apostam no café, que já lhe deu um título de melhor produtor regional em concurso organizado pela Cooperativa Agropecuária e Industrial de Mandaguari (Cocari). “Hoje, o que manda é a qualidade”, diz. “Pouca planta e bastante colheita”. Antigamente, plantava-se muito, mas produzia menos e com qualidade inferior.

Para ele, a geada de 1975 foi uma catástrofe, mas quem não dependia de mão de obra conseguiu se recuperar. É o caso da família Rosseto que sofreu o impacto do fenômeno climático, mas se reergueu. Mesmo assim, alguns dos parentes foram para São Paulo, onde moram até hoje.

O agrônomo Marcos Aurélio Volpato diz que o café é um bom negócio, levando em conta o preço, que gira em torno de R$ 400 a saca de 60 quilos. Mas ele aconselha o produtor a explorar a atividade com mão de obra familiar, evitando gastos excessivos. “Mecanizar o máximo possível e só contratar mão de obra esporadicamente”, diz, acrescentando: “Cultivar a lavoura no sistema adensado; utilizar cultivares mais resistentes a pragas e doenças; colher no pano com sopradores de palhas motorizados e secar em terreiros suspensos ou em lonas plásticas”.


Rosseto, de Mandaguari, diz que colheita atual é à base de máquina e prima pela qualidade (Foto: Donizete)

Nota: Esta reportagem é de 2017, publiquei na revista Tradição, de Maringá. 

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